Wednesday, December 11, 2024

 

Pressupostos de aplicação da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de junho de 2024



 (Processo nº 0741/23.4BELSB)



O Supremo Tribunal Administrativo, em recurso de revista com julgamento ampliado a todos os juízes da secção de contencioso administrativo, pronunciou-se recentemente sobre os pressupostos para a utilização da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, no âmbito do acórdão de 6 de junho de 2024, referente ao Processo nº 0741/23.4BELSB. Trata-se de uma decisão de grande relevância, com forte caráter doutrinário, que busca estabilizar algumas divergências existentes na jurisprudência administrativa. O acórdão, relatado pela Conselheira Helena Mesquita Ribeiro, contou com votos vencidos da Conselheira Maria do Céu Neves, da Conselheira Susana Tavares da Silva e do Conselheiro Pedro Marchão Marques. O caso em questão abordava a adequação da intimação como meio para reagir contra a conduta omissiva da Administração Pública diante de um pedido de concessão de autorização de residência.


Análise do Acórdão do STA, de 6 de junho de 2024 


O Autor, identificado nos autos, intentou junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa ( doravante TAC Lisboa) uma ação de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, inicialmente contra o Ministério da Administração Interna, e presentemente contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA). No âmbito da referida ação, peticiona que a entidade demandada seja intimada a decidir sobre o pedido de concessão de autorização de residência apresentado em 5 de maio de 2020, emitindo o respetivo título de residência ou, subsidiariamente, declarando que a pretensão foi tacitamente deferida, dado o decurso do prazo legal para decisão. Requer, ainda, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória à entidade demandada, nos termos do artigo 169.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), em montante a fixar pelo Tribunal, por cada dia de incumprimento da sentença que venha a ser proferida.

Alegou, em síntese, que entrou legalmente em território nacional e apresentou, na mesma data, junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o pedido de autorização de residência ao abrigo do disposto no artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, com a redação introduzida pela Lei n.º 102/2017, de 28 de agosto, instruindo o requerimento com a documentação exigida. Invoca que, nos termos do artigo 82.º, n.º 1, da Lei n.º 102/2017, o pedido de autorização de residência deve ser decidido no prazo de 90 dias, o que não ocorreu, apesar das várias solicitações dirigidas ao requerido para a entrega de informação adicional e a emissão de decisão. Acrescenta que, decorridos mais de 33 meses desde a apresentação do requerimento, continua sem resposta por parte da Administração.

Sustenta que a falta de decisão viola gravemente os seus direitos fundamentais, designadamente o direito à segurança no emprego, pois encontra-se a trabalhar sem documentação há mais de 33 meses, sob o risco constante de despedimento. Argumenta que está sujeita à dependência da entidade empregadora, sem possibilidade de mudar de emprego ou negociar condições de trabalho, nomeadamente a prestação de horas extraordinárias, em virtude da sua situação irregular. Refere, ademais, que não pode visitar a sua família, residente no seu país de origem há mais de três anos, em virtude da ausência de título de residência, sendo assim violado o direito à família consagrado no artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Aponta ainda que a sua situação irregular limita o seu direito à liberdade e à segurança, dado que pode ser alvo de fiscalizações por parte das autoridades em qualquer local público ou no seu local de trabalho, e que a Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro, determina a obrigatoriedade do porte de documento de identificação, o que a Administração impede, ao não decidir sobre o pedido formulado. Alega igualmente que se encontra impedida de aceder plenamente ao sistema de saúde, estando obrigada ao pagamento integral de taxas moderadoras, apesar de contribuir para a Segurança Social desde dezembro de 2020 e de pagar impostos em Portugal.

Sustenta que o cerceamento dos seus direitos fundamentais decorre das regras da experiência comum e é dedutível por presunção judicial, estando indocumentada e, consequentemente, privada dos direitos reconhecidos aos cidadãos estrangeiros residentes nos termos do artigo 15.º da CRP. Afirma que preenche os requisitos legais previstos no artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, para obtenção de autorização de residência, nomeadamente possuir contrato de trabalho, ter entrado legalmente no país e estar inscrita na Segurança Social.

Alega que, estando em causa direitos fundamentais de cidadania e identidade, não se justificam decisões provisórias e precárias, as quais poderão ser revogadas na ação principal, normalmente morosa, sendo o presente meio processual adequado para a defesa dos seus interesses. Invoca a proteção multinível dos direitos fundamentais e a idoneidade da intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias, em conformidade com o artigo 20.º, n.º 5, da CRP e conclui requerendo a procedência da ação .

Quanto a esta primeira parte requerida pelo autor , será relevante mencionar alguns aspetos. Para assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos face às atuações da Administração Pública, conforme ilustrado no acórdão em análise, os particulares podem recorrer a diferentes tipos de ações previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), classificadas como urgentes e não-urgentes. As ações urgentes destinam-se a salvaguardar situações em que a celeridade da intervenção judicial é essencial, seja no interesse dos particulares, da Administração ou de ambos, permitindo a resolução definitiva do litígio no menor prazo possível. Entre essas ações principais urgentes destaca-se, no contexto do caso em apreço, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.

A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias vem regulada nos artigos 109º e ss. do CPTA. Segundo o nº1 do art. 109.º o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias têm natureza subsidiária face à tutela cautelar e só deve ser interposto quando a urgência  na obtenção da decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou garantia, ou mesmo direito análogo a este. Assim, destacam-se os  requisitos de indispensabilidade e subsidiariedade. A falta de qualquer um destes pressupostos de admissibilidade consubstancia exceção dilatória inominada de inidoneidade do meio processual.

O Professor Mário Aroso de Almeida refere que “o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades  e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de  direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma acção não  urgente (acção administrativa comum ou acção administrativa especial), associada à dedução de  um pedido de decretamento de providências cautelares, destinadas a assegurar a utilidade da  sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa acção. Só quando, no caso  concreto, se verifique que a utilização da via normal não é possível ou suficiente para assegurar  o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo  de intimação”. O professor Vasco Pereira da Silva refere que, através deste meio, atenta a sua função protetora de direitos fundamentais, podem ser mobilizadas, à partida, pretensões de qualquer tipo (maxime, impugnatórias) e não exclusivamente condenatórias/intimatórias, sendo que o disposto no artigo  109.º/3 é uma confirmação disso mesmo.

Quanto à legitimidade para a utilização deste meio , levantam-se questões relativamente à legitimidade ativa como à legitimidade passiva. A legitimidade ativa para requerer a intimação é atribuída a qualquer pessoa que alegue e demonstre sumariamente a existência de ameaça ou início de lesão a um direito, liberdade ou garantia, decorrente de uma ação ou omissão, jurídica ou material, praticada por entidades no exercício de funções materialmente administrativas. Trata-se de uma ação de caráter subjetivo, o que exclui a possibilidade de atuação do Ministério Público por meio de ação pública. Conforme o artigo 12.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), tanto pessoas singulares quanto coletivas podem ser requerentes, sendo que as pessoas coletivas possuem os direitos e deveres compatíveis com a sua natureza. No tocante à legitimidade passiva, o artigo 109.º da CRP estabelece que os possíveis requeridos incluem, no nº 1, a Administração Pública (em sentido orgânico) e, no nº 2, outras entidades que desempenhem funções materialmente administrativas, como concessionários. Em síntese, atendendo ao acórdão em análise, a utilização da Intimação para a Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias está condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos legais: a necessidade de uma decisão de mérito urgente, que seja adequada e indispensável para garantir, em tempo hábil, o exercício de um direito, liberdade ou garantia e a  impossibilidade ou insuficiência da concessão provisória de uma providência cautelar no âmbito de uma ação administrativa, seja ela especial ou comum.

Prosseguindo com a análise do acórdão, o pedido foi liminarmente indeferido pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TAC), a 12.03.2023, com base na suposta inadequação do meio processual utilizado, sob o argumento de que a urgência alegada não fora demonstrada e o autor não havia esgotado outros meios processuais, como uma ação administrativa principal cumulada com providência cautelar para atribuição provisória de autorização de residência. Resulta do entendimento do TAC , a falta de pressupostos para a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias da autora , no entanto a decisão está aberta a debate. Efetivamente temos direitos invocados pelo recorrente nomeadamente: direito à segurança no emprego , direito à família e direitos fundamentais de cidadania. Esses direitos, ainda que possam, em certa medida, ser classificados como direitos, liberdades e garantias, ou a eles análogos, e, portanto, incluídos no âmbito de aplicação do artigo 109.º do CPTA, poderiam ser interpretados como relacionados ao exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia por parte dos seus representados, verifica-se o preenchimento do primeiro pressuposto. 

Relativamente ao segundo pressuposto , alvo da decisão que determinou o indeferimento liminar do pedido , o autor estava perante a impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar? O autor em estado de vulnerabilidade e possivelmente por falta de informação não poderia recorrer a um meio pelo qual não tinha conhecimento, existem vários fatores no meu entendimento em ter em conta ao invés de aplica este pressuposto de forma tão metódica e rigorosa.

O Autor recorreu da decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), que manteve o indeferimento com argumentos semelhantes, negando a apelação do autor. Em face dessa decisão, foi interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo. Assim o STA foi chamado a decidir sobre três questões cruciais : se a ausência de decisão administrativa no prazo legal de 90 dias poderia ser interpretada como deferimento tácito do pedido de autorização de residência , qual seria o meio processual adequado para reagir contra a inércia administrativa em casos que envolvam direitos fundamentais de cidadãos estrangeiros e se a urgência alegada pelo requerente era compatível com a demora em recorrer ao Judiciário.

O STA, ao contrário das instâncias inferiores, adotou um entendimento mais amplo sobre a relevância da proteção de direitos fundamentais em situações de inércia administrativa. O STA esclareceu que, embora o prazo legal de 90 dias para decisão administrativa tenha sido amplamente ultrapassado, o silêncio da Administração não pode ser interpretado como deferimento tácito. A Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, exige uma decisão expressa para a atribuição de autorização de residência, não permitindo presumir o deferimento apenas com base na omissão. Concluiu ainda  que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é o meio processual adequado em situações de grave violação de direitos fundamentais, como aquelas em que a inércia administrativa impede o exercício pleno de direitos constitucionais, destacando que: a urgência no caso não é de natureza meramente cautelar, mas sim na obtenção de uma decisão definitiva de mérito e a utilização de meios processuais alternativos, como a ação administrativa principal cumulada com providência cautelar, não garantiria a celeridade necessária para a proteção efetiva dos direitos em questão.

O STA refutou o argumento de que a demora do autor em recorrer judicialmente descaracterizaria a urgência da situação. A permanência em situação irregular coloca o cidadão estrangeiro em vulnerabilidade constante, comprometendo direitos fundamentais como o direito ao trabalho, à saúde e à estabilidade familiar. O Tribunal destacou que a urgência da situação deve ser analisada à luz da vulnerabilidade do requerente e não apenas do tempo decorrido. Enfatizou ainda que  uma solução provisória, como a atribuição de autorização de residência cautelar, seria insuficiente. Em vez disso, é necessária uma decisão definitiva que assegure estabilidade ao cidadão estrangeiro, permitindo-lhe residir de forma regular em Portugal. A decisão definitiva é essencial para garantir a dignidade da pessoa humana e o gozo pleno dos direitos fundamentais.

Contudo, o entendimento não foi unânime constando dos votos vencidos :  que a intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias é um instrumento apto para tutelar uma situação jurídica, sem, no entanto, qualificá-la juridicamente como um direito, liberdade ou garantia determinado e pessoalmente titulado, no caso concreto, considerando que o objetivo da intimação era compelir ao cumprimento do dever de decisão administrativa, a factualidade apresentada não configurava uma situação de especial urgência diretamente vinculada à necessidade de assegurar, em tempo útil, o exercício de direitos, liberdades e garantias, além disso, o acórdão reconheceu a existência de outro meio processual capaz de tutelar, de forma adequada e suficiente, o direito em questão. O acórdão, contudo, afasta-se do rigor legal na análise dos pressupostos normativos exigidos para a utilização da intimação, referem os votos vencidos, assumindo-se como uma decisão estratégica.

Será de concluir após análise do acórdão , que o Supremo Tribunal Administrativo reafirmou a necessidade de celeridade administrativa e judicial na garantia dos direitos fundamentais de cidadãos estrangeiro, tal decisão evidencia que a efetividade dos direitos constitucionais e internacionais não se compadece com soluções precárias e insuficientes. É de notar que diante do atual cenário, marcado por um acúmulo expressivo de pedidos de autorização de residência pendentes de decisão, essa orientação jurisprudencial naturalmente exerce maior pressão sobre a Administração Pública e os tribunais. Tal pressão, ainda que legítima e compreensível, levanta expectativas quanto à capacidade do sistema de responder adequadamente a esses desafios, resta aguardar que o sistema demonstre resiliência e capacidade de adaptação frente às demandas apresentadas.



Bibliografia

  •  PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª ed. atualizada, Coimbra, Livraria Almedina, 2013´

  • ALMEIDA, Mário Aroso de. (2020). “Manual de Processo Administrativo”. Edições Almedina. 4ª edição 


  • Catalina Coptu subturma 6 
    nr:66465


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