Tuesday, November 5, 2024

O Ministério Público: Representação orgânica ou legal? Ou mero Patrocínio judiciário?

O Ministério Público: representação orgânica ou legal? Ou mero patrocínio judiciário?

O impacto da Reforma de 2004 do Contencioso Administrativo na sua atuação 


 A atuação do Ministério Público no Contencioso Administrativo Português

No âmbito do processo administrativo, o Ministério Público (doravante MP) possui determinadas funções e atribuições, muitas delas elencadas em diversos artigos de múltiplos diplomas já estudados na nossa disciplina, como acontece na nossa Constituição (CRP), na qual temos referência no seu artigo 219º, onde se atribui ao MP as funções de representação do Estado, defesa da legalidade democrática e os interesses determinados pela lei e a promoção da realização do interesse público, exercendo para tal os poderes que a lei processual lhe atribui. Existe também esta referência em diplomas como o Estatuto do Ministério Público (EMP), nomeadamente nos artigos 3º e 5º, e no Estatuto dos Tribunais Administrativos (ETAF) no seu artigo 51º. No caso do CPTA, este reconhece-lhe também um papel processual relevante. 

O Professor SÉRVULO CORREIA, aponta 3 ordens de funções do MP: a ação pública, a coadjuvação do Tribunal na realização do Direito, e o patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imposição da lei. 
[1]

O Professor Regente VASCO PEREIRA DA SILVA defende no seu manual: “No que respeita à ação pública, ela constitui atualmente o principal poder de intervenção processual do Ministério Público, na sequência da reforma do Contencioso Administrativo, que revalorizou o respetivo papel de sujeito processual em detrimento da sua intervenção como “auxiliar do juiz”. pode dizer-se que a defesa da legalidade democrática que a Constituição atribui ao Ministério Público é entendida como dever de fiscalização dos atos e comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos segundo os princípios da legalidade e da juridicidade. 
[2]

 

Enquadramento normativo

No ETAF temos um capítulo com 2 artigos dedicados ao MP: um no qual se enuncia sucintamente as suas funções no âmbito do contencioso administrativo - art. 51 - e outro que estabelece a sua representação nos vários tribunais independentemente do nível hierárquico na ordem jurisdicional administrativa - art.52.

A representação do Estado pelo MP vem dispersa em vários diplomas normativos, nomeadamente: art. 51/1 ETAF, art.11/1 CPTA, art. 1 EMP, art. 24/1 CPC, art. 3/1 LOSJ, art.219/1 CRP.

            Destes artigos resulta que a lei só lhe atribui a representação em juízo do Estado e não de outras pessoas coletivas públicas. No entanto, no que toca à representação do Estado, a doutrina tem vindo a debater várias questões. 

 

O impacto da constituição de 1974 e da Reforma de 2004 na sua atuação:

Foi com a instituição da CRP em 1974 que se inseriu o MP num capítulo próprio da constituição bem como a consagração da sua autonomia.

A 1 de Janeiro de 2004 com a entrada em vigor do ETAF e do CPTA surgiu um novo paradigma de justiça administrativa no sentido da subjectivação do contencioso administrativo, que veio alterar o modelo então tradicional do Ministério Público.

Os Professores GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA afirmam que o paradigma de MP acolhido pela constituição de 76 “é o de um órgão da justiça independente e autónomo, subtraído à dependência do poder executivo e erguido à categoria e magistratura, com garantias próprias aproximadas dos juizes”.
[3]

Anteriormente a esta reforma podíamos afirmar que a sua intervenção era meramente processual, no entanto verificamos desde logo que se configurava mais ampla do que a atual uma vez que, após esta reforma, as tarefas que lhes eram atribuídas sofreram um encurtamento sendo que, atualmente a sua atuação já não recai sobre questões processuais cingindo-se apenas a questões substantivas. 

            Ao consultarmos o site do MP online verificamos que o próprio se apresenta como “não sendo um órgão de administração pública nem um órgão do poder político, executivo ou legislativo, nem mesmo um tribunal ou juiz, afastando se da ideia de “advogado do Estado”.[4]

            Atualmente, a sua atuação apenas se admite em processos que sigam a forma administrativa especial e em que não intervenha como parte, quando anteriormente intervinha em todos os processos administrativos - passando de obrigatória a facultativa e aos dias de hoje, apenas está prevista uma intervenção no processo, sendo que anteriormente intervinha em dois momentos distintos em todos os processos administrativos: a emissão do visto inicial e do visto final.

            O argumento basilar que justificou esta “redução” dos seus poderes de intervenção resultava da ideia de que os seus poderes (anteriormente à reforma) duplicavam a sua função judicial e deste modo, determinou-se a perda deste “protagonismo excessivo” que era atribuído ao MP, de modo a conseguir alcançar o equilíbrio dos poderes dos intervenientes processuais.

Deste modo podemos concluir que a sua intervenção na discussão de julgamento foi de facto afastada após a Reforma, no entanto, a sua função como “auxiliar do tribunal” mantém a sua importância, nomeadamente na defesa de interesses públicos com particular relevância.

 

Estamos perante uma representação orgânica ou legal? Ou perante um mero patrocínio judiciário?

            A posição tradicionalmente adotada vai no sentido em que, uma vez que estamos perante um órgão estatual, tratar-se-ia de uma representação orgânica. Em sentido contrário pronuncia-se a Professora ALEXANDRA LEITÃO, “este órgão não é um órgão da pessoa coletivo Estado pelo que afirma como sendo a tese da representação legal a mais correta”.[5]

            Tendo em conta esta posição defendida pela Professora e fazendo um contraste com o artigo 11 CPTA, nomeadamente a sua epígrafe, constatamos que há de facto referência a representação e a patrocínio judiciário.

            A grande maioria da doutrina portuguesa pronuncia-se no sentido em que as atuações do MP, na sua generalidade, têm de se pautar por determinados critérios, nomeadamente: de imparcialidade, legalidade e objetividade. Deste modo, quando a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal, O MP deve afastar-se e recusar a sua representação, indo de encontro com o disposto no artigo 69 EMP. 


MP como representante do Estado ou defensor da legalidade democrática?

Apesar da doutrina se encontrar bastante dividida no que toca a esta divisão, podemos concluir que esta “figura”, o Ministério Público, tem vindo a sofrer alterações ao longo dos anos através de várias reformas para que hoje em dia se possa assumir num plano bastante distinto. Contudo, conclui-se que continua a ter um papel fundamental e até mesmo indispensável no processo administrativo uma vez que assegura direitos e valores fundamentais, controla o cumprimento da lei e defende tanto os interesses dos particulares como comunitários.

 


[1] SÉRVULO CORREIA, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p.303.

[2] VASCO PEREIRA DA SILVA, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2016, p. 271.

[3] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao artigo 219, Coimbra Editora, Coimbra, 2010.

[4] Citação retirada do site oficial do Ministério Público: http://ministerio-publico.pt/ministerio-publico-e-o-estado/.

[5] ALEXANDRA LEITÃO, A Representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, pp. 206 e 207.


Bibliografia:

ALEXANDRA LEITÃO, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, in Revista Julgar n.20, Coimbra Editora, 2013, disponível em http://julgar.pt/a-representação-do-estado-pelo-ministerio-publico/

CLÁUDIA DOS SANTOS SILVA, O ministério público no atual contencioso administrativo português, e-publica, 2016.

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao artigo 219, Coimbra Editora, Coimbra, 2010.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2024.

https://www.ministeriopublico.pt/pagina/o-ministerio-publico


Madalena Dias Marques,

ST6, aluna 66483

Lisboa, 2024

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