Saturday, December 7, 2024

A ocupação ilegal de casas de habitação social e a utilização de providências cautelares como meio de obstar ao despejo

 

A ocupação ilegal de casas de habitação social e a utilização de providências cautelares como meio de obstar ao despejo

 

1.      Introdução

Nos últimos anos tem-se assistido nos nossos tribunais administrativos a um fenómeno peculiar: a interposição de providências cautelares para obstar a despejos decorrentes de ocupação ilegal de casas de habitação social, geralmente pertencentes aos municípios. 

Com efeito, sob a alegação de se encontrarem em situação de carência financeira e habitacional, alguns indivíduos e seus agregados familiares, ao arrepio das regras legais de atribuição de habitação social, tomando conhecimento de imóveis dessa natureza que, por algum motivo, se encontram momentaneamente desocupados, procedem à sua ocupação, de forma ilegal e sem título válido, as mais das vezes com recurso a arrombamento.

Quando confrontados com uma ordem de desocupação do imóvel emanada pelo município, proprietário do mesmo, recorrem à interposição de providências cautelares junto dos tribunais administrativos (competentes por via do disposto no n.º 3 do artigo 17º, conjugado com os artigos 35º e 28º, todos da Lei 81/2014, de 19 de dezembro, que estabelece o Regime do Arrendamento Apoiado para Habitação), com vista a suspender a eficácia da referida ordem.

O que se pretende com este trabalho, além de uma breve exposição acerca do regime das providências cautelares no âmbito do contencioso administrativo, é averiguar como os tribunais administrativos têm decidido estes casos e discutir a legitimidade de recorrer a esse meio legal para legitimar atuações que, na sua génese, são ilegais.


2.      Regime das providências cautelares

As providências cautelares no âmbito do contencioso administrativo, tal como no processo civil, pretendem, nas palavras de José Carlos Vieira de Andrade “garantir o tempo necessário para fazer Justiça”[1].

Pretende-se, assim, que um direito que se encontre ameaçado receba uma tutela efetiva, em tempo útil, de modo a evitar “uma lesão grave e dificilmente reparável”[2].

Com efeito, atento o tempo “normal” de tramitação de uma ação administrativa comum, há situações que não se compadecem com essa espera e que necessitam de uma decisão efetiva, ainda que provisória, conseguida através da interposição dessas providências, cuja tramitação é mais célere.

O regime das providências cautelares, no âmbito do contencioso administrativo, encontra-se previsto nos artigos 112º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).


2.1.   As características das providências cautelares

Como ensina a lição do Professor Mário Aroso Almeida[3], as providências cautelares obedecem a um conjunto de princípios, nomeadamente, o da instrumentalidade, da provisoriedade e da sumariedade.

          a) Instrumentalidade

Existe uma ligação estreita entre o processo principal e a providência cautelar, pautada desde logo, pela dependência estatuída no n.º 1 do artigo 113º do CPTA que dispõe que “o processo cautelar depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito”.

A instrumentalidade manifesta-se no facto de a providência ter de ser desencadeada por quem tenha legitimidade para interpor a ação principal, nos termos do n.º 1 do artigo 112º do CPTA e de obrigar à existência de uma ação principal, seja ela anterior ou posterior, sob pena de caducidade.

De facto, conforme resulta do já mencionado n.º 1 do artigo 113º e do artigo 114º, ambos do CPTA, elas podem ser intentadas “como preliminar ou como incidente do processo respetivo” e devem sê-lo, “em requerimento próprio, apresentado: a) Previamente à instauração do processo principal; b) Juntamente com a petição inicial do processo principal; c) Na pendência do processo principal.”

Por outro lado, o artigo 123º do CPTA, em clara demonstração dessa instrumentalidade, estabelece os casos em que os processos cautelares se extinguem e, quando decretadas, as providências cautelares caducam, tendo em conta as vicissitudes da ação principal.


         b) Provisoriedade

A provisoriedade traduz-se no facto de, na providência cautelar, não estar em causa a decisão definitiva do litígio, mas antes uma regulação provisória do mesmo.

Assim, essa provisoriedade manifesta-se, por exemplo, na possibilidade prevista no artigo 124º do CPTA, de o tribunal poder revogar ou alterar a decisão de adotar ou recusar providências cautelares, com fundamento em alteração dos pressupostos de facto e de direito inicialmente existentes.

A regulação provisória da questão está, assim, votada a ser substituída pela decisão definitiva que resultar da ação principal e, daí, o seu caráter provisório.


        c) Sumariedade

A sumariedade manifesta-se ao nível do próprio procedimento, cuja marcha é mais simples e mais célere, com trâmites mais simplificados e prazos reduzidos, e ao nível da apreciação que é feita da situação.

Efetivamente, estando em causa um processo urgente, que requer uma solução célere, a apreciação das circunstâncias pelo juiz terá de ser, necessariamente, sumária.

Desta forma, o juiz do procedimento cautelar “deve proceder a meras apreciações perfunctórias, baseadas num juízo sumário dos factos a apreciar, evitando antecipar juízos definitivos, que, em princípio, só devem ter lugar no processo principal”.[4]

O juiz bastar-se-á, assim, com um mero juízo de verosimilhança ou probabilidade da existência do direito invocado.

 

2.2.   Os tipos de providências cautelares

Prevê o n.º 1 do artigo 112º do CPTA que pode ser solicitada “a adopção da providência ou das providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo”.

Perfila-se, assim, a existência de dois tipos de providências cautelares: as antecipatórias e as conservatórias.

Como o próprio nome indica, as providências cautelares antecipatórias visam antecipar a realização do direito que se quer fazer valer e, portanto, terão um conteúdo idêntico ao da sentença que vier a ser proferida na ação principal, consubstanciando, assim, uma satisfação antecipada do direito do requerente.

Por essa razão, a jurisprudência e a doutrina têm pugnado pelo carácter excecional deste tipo de providência, devendo o juiz cautelar agir com particular cuidado no seu decretamento.

Já as providências cautelares conservatórias visam manter ou conservar um direito existente e que se encontre ameaçado, acautelando, dessa forma, o efeito útil da ação principal.

Limitam-se, assim, a preservar uma situação já existente e, ao contrário do que sucede nas providências cautelares antecipatórias, não antecipam qualquer decisão final que possa vir a ser tomada na ação principal.

Logo, não se verifica uma tutela imediata do direito do requerente, visando-se apenas evitar o perecimento desse direito ou assegurar que o seu titular não fica impedido de exercê-lo futuramente.

O n.º 2 do normativo legal acima referido contém um elenco exemplificativo desses tipos de providências, podendo identificar-se as seguintes:

a) Suspensão da eficácia de um ato administrativo ou de uma norma;

b) Admissão provisória em concursos e exames;

c) Atribuição provisória da disponibilidade de um bem;

d) Autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma atividade ou adotar uma conduta;

e) Regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição à Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas ou a título de reparação provisória;

f) Arresto;

g) Embargo de obra nova;

h) Arrolamento;

i) Intimação para adoção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular por alegada violação ou fundado receio de violação do direito administrativo nacional ou do direito da União Europeia.


2.3.   Requisitos necessários ao decretamento de providências cautelares

Os n.º 1 e 2 do artigo 120º do CPTA elencam os requisitos tradicionalmente reconhecidos como necessários ao decretamento de uma providência cautelar, sendo eles: o periculum in mora (perigo na demora), o fumus boni iuris (aparência de bom direito) e a proporcionalidade (ponderação dos interesses em presença).

Estes requisitos são cumulativos, pelo que a providência cautelar só poderá ser decretada quando todos se encontrarem preenchidos.


a) Periculum in mora

Dispõe a 1ª parte do n.º 1 do artigo 120º do CPTA que “as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”.

Estamos aqui perante o requisito designado como periculum in mora ou perigo na demora que tem a ver com o fundado receio de ocorrência de um dano ou lesão na esfera do requerente, em resultado da demora “normal” da ação principal.

Quer isto dizer que este requisito se encontra preenchido quando exista fundado receio de que, quando a ação principal terminar e em face de circunstâncias entretanto ocorridas, a sentença proferida seja já extemporânea e impossível de executar ou se tenham já produzido danos de difícil reparação.

Nos casos acima referidos o requerente carece, portanto, de uma medida que solucione a situação a título provisório.

Desta forma, como ensina Mário Aroso Almeida “se não falharem os demais critérios de que depende a concessão da providência, ela deve ser, pois, concedida desde que os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade”.[5]

A providência também deve ser concedida “quando, mesmo que não seja de prever que a reintegração, no plano dos factos, da situação conforme à legalidade se tornará impossível pela mora do processo, os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio da produção de "prejuízos de difícil reparação" no caso de a providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspetiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente”.[6]

No primeiro caso, a providência visa evitar o “risco de infrutuosidade da sentença” e, no segundo, o “risco de retardamento da tutela”.[7]


b)  Fumus boni iuris

A 2ª parte do n.º 1 do artigo 120º do CPTA estatui que “as providências cautelares são adotadas quando (…) seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.

Refere-se este preceito ao requisito do fumus boni iuris ou da aparência de bom direito que implica que a providência cautelar só possa ser concedida quando se verifiquem indícios razoáveis de que o direito que o requerente pretende valer existe. Não se exige, portanto, nesta sede, que o direito exista efetivamente, mas deve estar demonstrada a probabilidade ou possibilidade da sua existência.

Assim, como refere Mário Aroso Almeida “a atribuição das providências cautelares depende de um juízo, ainda que perfunctório, por parte do juiz, sobre o bem fundado da pretensão que o requerente faz valer no processo declarativo. O juiz deve, portanto, avaliar o grau de probabilidade de êxito do requerente no processo declarativo. Essa avaliação deve, naturalmente, conservar-se dentro dos estritos limites que são próprios da tutela cautelar, para não comprometer nem antecipar o juízo de fundo que caberá formular no processo principal”.[8]

O requerente deverá, assim, apresentar prova indiciária da existência do seu direito que indicie a probabilidade de a ação principal vir a ser julgada procedente.

 

c) Proporcionalidade

Refere o n.º 2 do artigo 120º do CPTA que, ainda que se mostrem preenchidos os requisitos do n.º 1 (periculum in mora e fumus boni iuris), a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências”.

Este requisito impõe que o juiz pondere os danos que o requerido irá sofrer com a concessão da providência cautelar, bem como os danos que o requerente suportará com a sua recusa, devendo abster-se de decretar a providência caso os danos que resultarem da sua concessão se mostrem superiores àqueles que resultarão da sua recusa.

Assim, “avaliam-se, num juízo de prognose, os resultados de cada uma das alternativas, e não se concede a providência, mesmo que se verifiquem os requisitos, quando os prejuízos da concessão sejam superiores aos prejuízos que resultariam da não concessão”.[9]

 

3. A interposição de providências cautelares contra os municípios para obstar a despejos decorrentes de ocupação ilegal de casas de habitação social

Aqui chegados e feita uma breve resenha do regime aplicável às providências cautelares no âmbito do contencioso administrativo, há que debruçar-nos no caso em análise, nomeadamente, a interposição de providências cautelares contra os municípios para obstar a despejos decorrentes de ocupação ilegal de casas de habitação social.

Para esse efeito e por ser ilustrativo da situação em apreço, usaremos como exemplo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16/10/2024, referente ao processo n.º 433/23.4BELLE (disponível em www.dgsi.pt).

Assim, estamos perante um caso em que a requerente da providência cautelar e o seu agregado familiar, sem que previamente se tenham apresentado a concurso para ocuparam uma habitação municipal, conforme legalmente previsto, ocuparam, de forma abusiva, uma determinada habitação municipal, pertencente ao município de Portimão, sem que fossem detentores de qualquer título válido para esse efeito.

Para obstar ao despejo, a requerente interpôs um procedimento cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé) para a adopção da providência de intimação para abstenção de uma conduta, nomeadamente, para que o município de Portimão se abstivesse de, por qualquer forma, criar obstáculos ou impedir o normal uso do locado pela requerente e seu agregado familiar, alegando uma situação de carência económica e habitacional e que tem dois filhos menores, um de quatro meses e outro de dois anos, com doença crónica.

O TAF de Loulé decidiu decretar a providência cautelar, referindo que:

·         A atuação da Requerente se enquadra numa situação de estado de necessidade, tendo como propósito remover um perigo atual e um dano manifestamente superior, designadamente em relação aos filhos menores da Requerente”.

·         “A Requerente não tem o direito de ocupar o fogo sem se submeter às regras do jogo quanto ao seu acesso. Do que se trata é apenas de garantir procedimentos que não inutilizem a existência mínima do direito fundamental à habitação da Requerente e do agregado familiar. Ou seja, enquanto a Entidade Requerida não assegurar o encaminhamento para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, garantindo o mínimo de dignidade e o núcleo essencial do direito à habitação do agregado familiar da Requerente, a ocupação do fogo ocorre em estado de necessidade (artigo 339.º do Código Civil, artigo 35.º, n.º 4 e 28.º, n.º 6 da Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto).”

·         “Todavia, logo que o encaminhamento para apoios sociais seja efetuado a Requerente tem de desocupar o fogo por não se verificarem os pressupostos do estado de necessidade. É neste sentido, e apenas neste sentido, que se considera demonstrado o fumus boni iuris, ou seja, de não ser possível o despejo da Requerente e do seu agregado sem que lhes sejam assegurados uma resposta social, real e prática, que garanta a proteção da sua dignidade e o direito fundamental à habitação.”[10]

Não se conformando com tal decisão, o município de Portimão veio dela interpor recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), por entender ter existido erro de julgamento e alegando, em suma, que “ainda que se verificasse uma situação de emergência social, certo é que, da factualidade assente resulta que a Recorrida/Requerente (e o seu agregado familiar) não detém qualquer título que a legitime a ocupar o fogo onde reside, pelo que, não lhe assiste o direito a permanecer na mesma, por via de uma tutela cautelar, podendo (e devendo) o Recorrente desencadear o procedimento tendente à sua desocupação”.

Mais referiu que “é, pois, manifesta a falta de fundamento da pretensão da Recorrida/Requerente, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo. Em face do que, é de perspetivar que, carecendo a sua pretensão de base legal, não irá obter decisão que lhe seja favorável na ação principal, pelo que não se encontra preenchido o requisito cautelar do fumus boni iuris, ao contrário do que assumiu o Tribunal a quo”.

Conclui que, “sendo a verificação dos critérios de decretamento das providências, previstos no artigo 120.º do CPTA, de natureza cumulativa, significa que o não preenchimento de um deles – desde logo, do critério de fumus boni iuris – determina a não adopção da providência requerida.”[11]

O TCAS decidiu nos seguintes termos:

“Atento o requisito do “fumus boni iuris” tal como prescrito pelo n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, é imperioso que em sede cautelar “seja provável que a pretensão formulada…nesse processo [no processo principal] venha a ser julgada procedente”, o que pressupõe, segundo a doutrina supra citada, que o direito clamado pela ora Recorrida se encontre já previamente definido no quadro normativo com clareza e precisão a seu favor, sem que se mostre necessário a formulação de juízos valorativos próprios da função administrativa e sem que o direito apenas possa ser efetivado através de um pedido do interessado dirigido à Administração.

Acontece que, no caso vertente, diversamente do propugnado pela sentença recorrida, não se perspetiva que seja plausível a procedência da pretensão material pedida no processo principal, ou seja, antes pelo contrário, o que se antevê, ainda que perfunctoriamente, é a falta de sustentação legal para julgar procedente a clamada pretensão de manter a atual estadia da Recorrida e do seu agregado familiar na habitação municipal (ocupada pela força e sem título válido), ainda que mediante a fixação de uma renda, e a falta de suporte normativo para a atribuição de outro fogo social sem que a mesma Recorrida se sujeite a procedimento concursal. E assim o entendemos, porquanto, nem o 65.º da CRP nem o disposto no artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, são de molde a justificar os direitos peticionados pela Recorrida.

Nestes termos, é, pois, manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela ora Recorrida, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, que cometeu um erro de julgamento ao adotar a medida cautelar requerida com base no instituto do estado de necessidade (cf. artigo 339.º do Código Civil), que erroneamente trouxe à colação para o presente caso.

É de antever, assim, que a pretensão da Recorrida carece de base legal, sendo provável que não irá obter decisão que lhe seja favorável na ação principal, pelo que, não se encontra preenchido o requisito cautelar do “fumus boni iuris”, ao contrário do que assumiu o Tribunal a quo.

Sendo de verificação cumulativa os critérios de decretamento das providências, previstos no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, o não preenchimento do “fumus boni iuris” é o que basta para concluirmos pela não adopção da providência cautelar requerida.”[12]

Considerou, assim, que o recurso deveria ser julgado procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida e julgou o processo cautelar improcedente.

 

4.      Análise final/Conclusões

Analisado o Acórdão acima explanado não podemos deixar de concluir que decidiu bem o TCAS ao julgar improcedente o processo cautelar, neste e noutros processos semelhantes, bem como o STA, em situações idênticas, por, na realidade não se mostrarem preenchidos os requisitos necessários ao decretamento das providências requeridas.

Assim, quanto a nós, não se verifica, efetivamente, o “periculum in mora”, designadamente, por, atenta a ocupação ilícita da habitação, não existir qualquer direito válido que os requerentes possam opor aos municípios e, logo, não haverá qualquer risco ou perigo de lesão de um direito que é inexistente.

Ainda que se considere que há um suposto e abstrato direito dos requerentes à habitação, nunca se poderia considerar verificado o requisito do “fumus boni iuris”, pois, na realidade, é de todo improvável a procedência do direito invocado, em sede de uma ação principal.

Com efeito, por muito respeito e solidariedade que nos mereça a situação precária do agregado familiar da requerente e de outros que recorreram a providências idênticas, não podemos concordar com a sua atuação.

De facto, mal andaríamos se cada pessoa em situação de carência económica e habitacional resolvesse ocupar casas de forma abusiva e à revelia dos procedimentos legalmente instituídos para o efeito.

Entrar-se-ia, assim, numa situação de absoluta anarquia, que daria certamente azo a muitos abusos e que consubstanciaria um flagrante desrespeito pelo próprio Estado de Direito, colocando em causa os princípios da igualdade, da segurança jurídica, da propriedade, entre outros.

É certo que o direito à habitação é constitucionalmente reconhecido no art.º 65º da Constituição da República Portuguesa, mas trata-se de uma norma de conteúdo programático, que necessita de ser concretizada por via de lei ordinária, que defina os critérios e procedimentos conducentes a atribuição das habitações sociais, in casu, a Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que regula a atribuição de habitações no regime do arrendamento apoiado.

Este direito à habitação traduz-se, assim, “na sua vertente positiva, na exigência de medidas e prestações do Estado com vista à sua realização, não conferindo, porém, a qualquer cidadão, um direito imediato a uma prestação efetiva, porquanto não é diretamente aplicável ou exequível; ou seja, é necessária uma atuação do legislador para concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei”.[13]

Logo, a circunstância de os agregados familiares dos requerentes das providências serem alvo de carências económicas e habitacionais não lhes confere, de modo automático, o direito a ocupar uma habitação social, de forma flagrantemente ilícita e implicando mesmo a prática de um crime, nem tão pouco podem aqueles, com o recurso ao Tribunal, pretender a legitimação dessa situação ilícita.

Aliás, parece-nos que não poderia nunca o Tribunal, enquanto guardião da legalidade, compactuar com uma atuação criminosa, decorrente da ocupação ilícita de um imóvel.

Já para não dizer que, se o Tribunal viesse a atender às pretensões desses requerentes, tal consubstanciaria uma flagrante violação do princípio da igualdade, conferindo-lhes um privilégio legalmente inadmissível relativamente aos outros munícipes que se encontram em lista de espera para atribuição de uma habitação social, alguns deles, em igual ou pior situação económica e a aguardar há mais tempo, sem, no entanto e ao contrário do que fizeram aqueles, terem recorrido a atuações abusivas e ilícitas.

Assim, concluímos que têm decidido bem os Tribunais ao não permitirem que, com recurso a um meio legal, nomeadamente, a interposição de providências cautelares, se procurem legitimar situações que são, na sua génese, ilegais.

 


Bibliografia consultada:

·         Almeida, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010.

·         Vieira de Andrade, José Carlos, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 10ª Edição, Almedina, 2009.

·         Diário da República - Lexionário

·         Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)


Jurisprudência consultada:

·         Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13/04/2024, referente ao processo n.º 47/22.6BELLE

·         Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16/10/2024, referente ao processo n.º 433/23.4BELLE

 

 

 

 

Trabalho realizado por:

Joana Lopes

Aluna n.º 66505

4º ano, Turma A, Subturma 6

 



[2] Cfr. “Procedimento Cautelar”, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/procedimento-cautelar-processo-civil

[8] Almeida, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010, página 477

[9] Vieira de Andrade, José Carlos, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 10ª Edição, Almedina, 2009, página 357

 

[11] Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 16/10/2024, referente ao processo n.º 433/23.4BELLE (disponível em www.dgsi.pt)

 

[13] Cfr, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13/04/2024, referente ao processo n.º 47/22.6BELLE (disponível em www.dgsi.pt)

 

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