Thursday, December 12, 2024

O papel do Ministério Público enquanto representante do Estado

 De acordo com o texto da Constituição da República Portuguesa, especificamente no artigo 219º/1, cabe ao Ministério Público a responsabilidade de representar o Estado e salvaguardar os interesses determinados por lei. Em relação ao contencioso administrativo, é incumbência do Ministério Público defender os interesses patrimoniais do Estado, conforme estipulado no artigo 53.º/a) do Estatuto do Ministério Público. Contudo, o artigo 11.º/2 do CPTA estabelece que a representação do Estado é atribuída ao Ministério Público apenas em processos que envolvam relações contratuais e responsabilidade.

Desde logo, é pertinente efetuar uma distinção entre a representação orgânica e a representação legal. A representação orgânica advém inerentemente da própria natureza das coisas, enquanto a representação legal resulta de uma escolha deliberada por parte do legislador. É viável optar por não atribuir ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, contudo, é inexequível determinar que a pessoa coletiva deixe de ser representada por um ou mais dos seus órgãos. Isto decorre da natureza imaterial das pessoas coletivas, que invariavelmente requerem um ou mais órgãos e titulares para expressar a sua vontade.

A partir das disposições constantes nos artigos 11º/2 do CPTA e 51.º do ETAF, infere-se que a lei confere exclusivamente ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, excluindo outras pessoas coletivas públicas. Conforme mencionado pela professora CLÁUDIA DOS SANTOS SILVA, essa prerrogativa diz respeito ao "Estado-administração, enquanto pessoa coletiva pública", e não ao Estado-nação ou ao Estado coletividade."

Se, no âmbito dos tribunais administrativos, o Ministério Público assume a responsabilidade de promover a ação pública, isto é, de intentar ações em defesa da legalidade e de interesses coletivos essenciais como saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural, e bens do Estado, regiões autónomas e autarquias locais, surge a indagação sobre se a atual flexibilidade no regime de patrocínio judiciário do Estado proporciona a melhor salvaguarda para os interesses do Estado de Direito Democrático. No passado, será que a natureza obrigatória da representação do Estado pelo Ministério Público foi considerada um aspeto benéfico para o contencioso administrativo?

O Ministério Público desempenha uma função fundamental em todos os processos administrativos, atuando como parte central ao propor ações em defesa da legalidade, impugna decisões administrativas ou normas regulamentares emitidas por órgãos da administração pública, seja a nível central, regional ou local. Além disso, representa o Estado em ações relacionadas a questões contratuais e de responsabilidade civil extracontratual.

O Ministério Público é vinculado pelo dever constitucional de agir conforme os critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade. Por conseguinte, a sua contribuição nos tribunais administrativos não deve ser eliminada ou subestimada. Na minha perspetiva, a instituição da representação do Estado pelo Ministério Público é justificada, exceto nos casos em que a pretensão do Estado seja manifestamente ilegal.

Em todo o caso, procederemos agora à análise do impacto das alterações ao CPTA, introduzidas pela Lei nº118/2019, no panorama do contencioso administrativo, especialmente no que se refere à participação do Ministério Público nos processos administrativos.

Independentemente disso, procederemos agora à análise do impacto das alterações ao CPTA, introduzidas pela Lei nº118/2019, no panorama do contencioso administrativo, especialmente no que se refere à participação do Ministério Público nos processos administrativos.O professor MÁRIO AROSO DE ALMEIDA expressou satisfação face à reforma de 2019 do CPTA, especialmente no que concerne à representação do Estado pelo Ministério Público. Nesse contexto, defende a ideia de que os agentes do Ministério Público não devem desempenhar o papel de advogados do Estado. Acrescenta ainda que seria apropriado criar um corpo específico de advogados do Estado, sujeito a um estatuto disciplinar e deontológico análogo ao dos advogados. Este corpo teria a responsabilidade de exercer o patrocínio do Estado, substituindo tanto o Ministério Público nas ações propostas contra o Estado quanto os solicitadores ou licenciados em Direito ou em solicitadoria nas ações movidas contra Ministérios, sem prejuízo da possibilidade de optar pela constituição de advogado.

Com todo o respeito, e considerando o estatuto de magistratura autónoma que é atribuído ao Ministério Público na nossa ordem constitucional, estou em desacordo em relação a essa perspetiva. Na minha opinião, seria mais apropriado adotar uma posição intermediária, uma espécie de equilíbrio entre extremos, ou seja, não optar pela obrigatoriedade total do Ministério Público representar o Estado, nem pela exclusão do Ministério Público como representante do Estado.

O parágrafo 1 do artigo 11.º do CPTA, anteriormente, estipulava que as entidades públicas tinham a permissão de recorrer a advogado, solicitador ou licenciado em Direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico em todos os processos, sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público. Isso estabelecia uma dicotomia no regime do patrocínio judiciário, distinguindo entre as ações relacionadas a atos ou omissões de órgãos do Estado[1] e outras ações referentes ao próprio Estado[2](2). Dessa maneira, o preceito estabelecia que, no primeiro tipo de ações, os Ministérios podiam ser representados por "advogado, solicitador ou licenciado em Direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico". Quanto ao segundo tipo de ações, a representação do Estado era obrigatoriamente atribuída ao Ministério Público.

A imposição da obrigação de representação do Estado pelo Ministério Público em ações propostas contra o Estado gerava descontentamento em grande parte da doutrina. Efetivamente, a eliminação dessa solução legal já havia sido sugerida em 2015 pela comissão de revisão do CPTA.

Nesse sentido, em 2019, a Lei n.º 118/2019 promoveu alterações na solução legal anterior do artigo 11º/1 do CPTA, estabelecendo que a representação do Estado pelo Ministério Público é agora uma "possibilidade" que o Estado pode exercer, deixando de ser uma obrigação nas ações relacionadas ao Estado. A citação é agora direcionada exclusivamente ao CCJE[3], a quem cabe decidir se a representação do Estado será realizada pelo Ministério Público ou por outro profissional designado para esse efeito, nas situações em que o Estado é demandado. Este procedimento é conforme ao disposto no artigo 25º/4 do CPTA.

Essa alteração nem sempre foi bem recebida pelo Ministério Público, como exemplificado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 03/07/2020. Nesse caso, o Ministério Público interpôs um recurso de apelação devido à discordância com a nova redação do artigo 11º/1 do CPTA, chegando inclusive a invocar a inconstitucionalidade material desse preceito.

O litígio refere-se a uma ação movida contra o Exército Nacional, integrado como órgão do Ministério da Defesa Nacional, a Caixa Geral de Aposentações IP e o Estado Português. Notavelmente, a citação do réu Estado Português foi direcionada exclusivamente para o CCJE, não tendo sido citado o Ministério Público, nem sequer notificado da existência da ação, conforme estabelecido no artigo 85º/1 do CPTA. 

O Ministério Público, inconformado com a decisão do Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que recusou a aceitação da alegação de nulidade pela falta de citação do réu Estado Português, com a subsequente anulação de todo o processamento após a Petição Inicial e a ordem para citar o Estado no Ministério Público, sem considerar a alegação de inconstitucionalidade material das disposições constantes do segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, decide interpor um recurso de apelação. Neste recurso, reitera a solicitação de revogação e substituição da decisão, por outra que recuse a aplicação das disposições constantes do segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do artigo 25º do CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, devido à alegada inconstitucionalidade material e, como consequência, solicita a declaração da nulidade pela falta de citação do réu Estado Português, com a subsequente anulação de todo o processamento após a Petição Inicial.

Dado que a recente alteração do artigo 11º/1 do CPTA estabelece que, ao demandar o Estado, o Ministério Público já não é citado em sua representação, como anteriormente estava consagrado, sendo agora o CCJE o destinatário da citação, conclui-se que o Ministério Público cometeu um grave equívoco ao reconhecer a existência de uma nulidade por falta de citação do réu, quando tal não era o caso. Optou por contrariar diretamente a letra da lei vigente nos artigos 11º/1 e 25º/4 do CPTA, propondo uma solução que, na prática, é inconstitucional. Apesar de essa solução ser consonante com a redação anterior do CPTA, o regime em vigor atualmente é distinto. Assim, considerando que a letra do CPTA não retroage, este recurso exemplifica que, por vezes, um Digno Magistrado do Ministério Público pode desviar-se da legalidade estabelecida na legislação administrativa.

A questão crucial residia em determinar se as disposições constantes do segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do artigo 25º do CPTA, na redação conferida pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, deveriam ter sido desconsideradas por serem materialmente inconstitucionais. Isto levanta a dúvida se, em vez de a citação ter sido direcionada ao CCJE, deveria ter sido dirigida ao Ministério Público, uma vez que é este quem deve representar, na ação, o demandado Estado Português.

Conforme o requerimento apresentado pelo Ministério Público, a questão não se resume apenas à conformidade constitucional de cada uma das normas quando lidas de modo isolado, mas sim ao sentido que se extrai da sua aplicação conjunta, no sentido de esvaziar os poderes de representação do Estado pelo Ministério Público. Nesse contexto, o Ministério Público tentou contornar a nova redação do artigo 11º/1 do CPTA; no entanto, não resta outra opção senão acatar a lei, independentemente de concordar ou não com o teor do dispositivo legal.

Resta salientar que o recurso foi, naturalmente, indeferido pelo Tribunal Central Administrativo do Norte.

Após esta análise jurisprudencial, que demonstra a falta de consenso sobre o tema, ao contrário da posição do Digno Magistrado do Ministério Público no caso apresentado, a doutrina, que anteriormente questionava e desaprovava a solução prevista no artigo 11º/1 do CPTA, atualmente elogia o legislador por introduzir uma flexibilidade necessária, permitindo ao Estado avaliar, em cada situação, qual é a solução mais apropriada.

Segundo a professora ALEXANDRA LEITÃO, o Ministério Público é, de fato, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado ou, em outras palavras, do Estado-Administração, que é aquele representado em ações cíveis e administrativas. Pelo contrário, trata-se de um órgão que se integra, sob o princípio da separação orgânico-funcional de poderes, na função judicial do Estado, conforme evidenciado pela sua inserção sistemática no Título V da Constituição, dedicado aos Tribunais. Nessa perspetiva, quando o Ministério Público instaura uma ação em nome do Estado, faz isso sempre por solicitação do órgão que representa organicamente o Estado no caso em questão. Contudo, isso decorre do fato de ser uma representação legal e de a lei determinar que assim seja. Esta é a posição fundamental do Ministério Público no nosso ordenamento jurídico.

Portanto, do meu ponto de vista, é inegável que o Ministério Público desempenha um papel fundamental no processo administrativo. Em primeiro lugar, porque não apenas supervisiona o cumprimento da lei, mas também defende os interesses dos indivíduos e da comunidade. Além disso, promove um processo administrativo mais equitativo, atuando como guardião dos direitos fundamentais e dos valores constitucionalmente protegidos, tanto de cada indivíduo quanto da comunidade.

O Ministério Público é caracterizado, nas palavras de SÉRVULO CORREIA, pela sua unidade orgânica, pela multiplicidade de funções e pela prossecução de diferentes interesses públicos.

No entanto, há uma falta de um quadro de magistrados do Ministério Público adequado às funções relevantes no âmbito dos processos administrativos. Conforme salienta o Secretário-Geral do SMMP[4], Adão Carvalho, essa escassez deve ser enfrentada e prevenida durante a fixação das vagas de acesso ao Centro de Estudos Judiciários para o Ministério Público, levando em consideração que, ao contrário dos juízes, o mesmo corpo de magistrados desempenha funções tanto na jurisdição administrativa quanto na jurisdição comum.

Considerando tudo o que foi exposto, é imperativo buscar uma solução mais eficaz que salvaguarde a posição do Ministério Público no processo administrativo, reconhecendo sua importância, ao mesmo tempo em que aborda a carência de um corpo de magistrados do Ministério Público especializado em processos administrativos. Uma possível solução poderia envolver a adoção de uma divisão semelhante à existente entre as jurisdições administrativas e comum para os magistrados, semelhante à divisão já estabelecida para os juízes. Isso garantiria que tanto o juiz quanto o magistrado do Ministério Público em casos específicos de contencioso administrativo possuíssem uma preparação e formação equivalentes para desempenhar adequadamente suas funções. Dessa forma, talvez seja possível alcançar uma solução mais viável a longo prazo, em vez de se alterar sistematicamente a letra da lei.

Bibliografia: 

  • Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 03-07-2020, Processo Nº 00902/19.2BEPNF-S1
  • AROSO DE ALMEIDA, Mário (2019). Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, in e-Pública Vol. 6 No. 3, dezembro 2019 (016-030) 18-20
  • CARVALHO, ADÃO, “O Papel do Ministério Público no contencioso administrativo”, Visão, 13/07/2020 https://visao.sapo.pt/opiniao/2020-07-13-o-papel-do-ministerio-publico-no-contencioso-administrativo/ 
  • DOS SANTOS SILVA, Cláudia Alexandra (2016). O ministério público no atual contencioso administrativo português, in e-Pública Vol. 3 No. 1, abril 2016 (165-183)
  • LEITÃO, Alexandra (2013). A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos, in JULGAR - N.º 20 – 2013, Coimbra Editora

 

Joana Fonseca

Nº 62870

4º ano turma A subturma 6



[1] Ações essas que, na análise do professor Mário Aroso de Almeida, são consideradas sucessoras do antigo recurso contencioso. Até 2015, esse recurso correspondia ao âmbito da ação administrativa especial e não era intentado, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 10.º, contra o Estado, mas sim contra os Ministérios aos quais os atos ou omissões são imputáveis.

[2] Quanto a estas ações, o professor Mário Aroso de Almeida entende que são sucessoras do velho contencioso das ações, cujo âmbito correspondia, até 2015, ao da ação administrativa comum e que são propostas contra o Estado, quando a este digam respeito.

[3] Centro de Competências Jurídicas do Estado

[4] Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

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