De acordo com o texto da Constituição da República Portuguesa, especificamente no artigo 219º/1, cabe ao Ministério Público a responsabilidade de representar o Estado e salvaguardar os interesses determinados por lei. Em relação ao contencioso administrativo, é incumbência do Ministério Público defender os interesses patrimoniais do Estado, conforme estipulado no artigo 53.º/a) do Estatuto do Ministério Público. Contudo, o artigo 11.º/2 do CPTA estabelece que a representação do Estado é atribuída ao Ministério Público apenas em processos que envolvam relações contratuais e responsabilidade.
Desde logo, é pertinente efetuar uma distinção entre a
representação orgânica e a representação legal. A representação orgânica advém
inerentemente da própria natureza das coisas, enquanto a representação legal
resulta de uma escolha deliberada por parte do legislador. É viável optar por
não atribuir ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, contudo,
é inexequível determinar que a pessoa coletiva deixe de ser representada por um
ou mais dos seus órgãos. Isto decorre da natureza imaterial das pessoas
coletivas, que invariavelmente requerem um ou mais órgãos e titulares para
expressar a sua vontade.
A partir das disposições constantes nos artigos 11º/2 do
CPTA e 51.º do ETAF, infere-se que a lei confere exclusivamente ao Ministério
Público a representação em juízo do Estado, excluindo outras pessoas coletivas
públicas. Conforme mencionado pela professora CLÁUDIA DOS SANTOS SILVA, essa
prerrogativa diz respeito ao "Estado-administração, enquanto pessoa
coletiva pública", e não ao Estado-nação ou ao Estado coletividade."
Se, no âmbito dos tribunais administrativos, o Ministério
Público assume a responsabilidade de promover a ação pública, isto é, de
intentar ações em defesa da legalidade e de interesses coletivos essenciais
como saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade
de vida, património cultural, e bens do Estado, regiões autónomas e autarquias
locais, surge a indagação sobre se a atual flexibilidade no regime de
patrocínio judiciário do Estado proporciona a melhor salvaguarda para os interesses
do Estado de Direito Democrático. No passado, será que a natureza obrigatória
da representação do Estado pelo Ministério Público foi considerada um aspeto
benéfico para o contencioso administrativo?
O Ministério Público desempenha uma função fundamental em
todos os processos administrativos, atuando como parte central ao propor ações
em defesa da legalidade, impugna decisões administrativas ou normas
regulamentares emitidas por órgãos da administração pública, seja a nível
central, regional ou local. Além disso, representa o Estado em ações
relacionadas a questões contratuais e de responsabilidade civil
extracontratual.
O Ministério Público é vinculado pelo dever constitucional
de agir conforme os critérios de legalidade, imparcialidade e objetividade. Por
conseguinte, a sua contribuição nos tribunais administrativos não deve ser
eliminada ou subestimada. Na minha perspetiva, a instituição da representação
do Estado pelo Ministério Público é justificada, exceto nos casos em que a
pretensão do Estado seja manifestamente ilegal.
Em todo o caso, procederemos agora à análise do impacto das
alterações ao CPTA, introduzidas pela Lei nº118/2019, no panorama do
contencioso administrativo, especialmente no que se refere à participação do
Ministério Público nos processos administrativos.
Independentemente disso, procederemos agora à análise do
impacto das alterações ao CPTA, introduzidas pela Lei nº118/2019, no panorama
do contencioso administrativo, especialmente no que se refere à participação do
Ministério Público nos processos administrativos.O professor MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA expressou satisfação face à reforma de 2019 do CPTA, especialmente no
que concerne à representação do Estado pelo Ministério Público. Nesse contexto,
defende a ideia de que os agentes do Ministério Público não devem desempenhar o
papel de advogados do Estado. Acrescenta ainda que seria apropriado criar um
corpo específico de advogados do Estado, sujeito a um estatuto disciplinar e
deontológico análogo ao dos advogados. Este corpo teria a responsabilidade de
exercer o patrocínio do Estado, substituindo tanto o Ministério Público nas
ações propostas contra o Estado quanto os solicitadores ou licenciados em
Direito ou em solicitadoria nas ações movidas contra Ministérios, sem prejuízo
da possibilidade de optar pela constituição de advogado.
Com todo o respeito, e considerando o estatuto de
magistratura autónoma que é atribuído ao Ministério Público na nossa ordem
constitucional, estou em desacordo em relação a essa perspetiva. Na minha
opinião, seria mais apropriado adotar uma posição intermediária, uma espécie de
equilíbrio entre extremos, ou seja, não optar pela obrigatoriedade total do
Ministério Público representar o Estado, nem pela exclusão do Ministério
Público como representante do Estado.
O parágrafo 1 do artigo 11.º do CPTA, anteriormente,
estipulava que as entidades públicas tinham a permissão de recorrer a advogado,
solicitador ou licenciado em Direito ou em solicitadoria com funções de apoio
jurídico em todos os processos, sem prejuízo da representação do Estado pelo
Ministério Público. Isso estabelecia uma dicotomia no regime do patrocínio
judiciário, distinguindo entre as ações relacionadas a atos ou omissões de
órgãos do Estado[1] e outras
ações referentes ao próprio Estado[2](2).
Dessa maneira, o preceito estabelecia que, no primeiro tipo de ações, os
Ministérios podiam ser representados por "advogado, solicitador ou
licenciado em Direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico".
Quanto ao segundo tipo de ações, a representação do Estado era obrigatoriamente
atribuída ao Ministério Público.
A imposição da obrigação de representação do Estado pelo
Ministério Público em ações propostas contra o Estado gerava descontentamento
em grande parte da doutrina. Efetivamente, a eliminação dessa solução legal já
havia sido sugerida em 2015 pela comissão de revisão do CPTA.
Nesse sentido, em 2019, a Lei n.º 118/2019 promoveu
alterações na solução legal anterior do artigo 11º/1 do CPTA, estabelecendo que
a representação do Estado pelo Ministério Público é agora uma
"possibilidade" que o Estado pode exercer, deixando de ser uma
obrigação nas ações relacionadas ao Estado. A citação é agora direcionada
exclusivamente ao CCJE[3],
a quem cabe decidir se a representação do Estado será realizada pelo Ministério
Público ou por outro profissional designado para esse efeito, nas situações em
que o Estado é demandado. Este procedimento é conforme ao disposto no artigo
25º/4 do CPTA.
Essa alteração nem sempre foi bem recebida pelo Ministério
Público, como exemplificado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo
Norte, datado de 03/07/2020. Nesse caso, o Ministério Público interpôs um
recurso de apelação devido à discordância com a nova redação do artigo 11º/1 do
CPTA, chegando inclusive a invocar a inconstitucionalidade material desse
preceito.
O litígio refere-se a uma ação movida contra o Exército
Nacional, integrado como órgão do Ministério da Defesa Nacional, a Caixa Geral
de Aposentações IP e o Estado Português. Notavelmente, a citação do réu Estado
Português foi direcionada exclusivamente para o CCJE, não tendo sido citado o
Ministério Público, nem sequer notificado da existência da ação, conforme
estabelecido no artigo 85º/1 do CPTA.
O Ministério Público, inconformado com a decisão do
Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que recusou a
aceitação da alegação de nulidade pela falta de citação do réu Estado
Português, com a subsequente anulação de todo o processamento após a Petição
Inicial e a ordem para citar o Estado no Ministério Público, sem considerar a
alegação de inconstitucionalidade material das disposições constantes do
segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do artigo 25º do CPTA,
na redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, decide interpor um recurso de
apelação. Neste recurso, reitera a solicitação de revogação e substituição da
decisão, por outra que recuse a aplicação das disposições constantes do
segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do artigo 25º do
CPTA, na redação da Lei nº 118/2019, de 17 de setembro, devido à alegada
inconstitucionalidade material e, como consequência, solicita a declaração da
nulidade pela falta de citação do réu Estado Português, com a subsequente
anulação de todo o processamento após a Petição Inicial.
Dado que a recente alteração do artigo 11º/1 do CPTA
estabelece que, ao demandar o Estado, o Ministério Público já não é citado em
sua representação, como anteriormente estava consagrado, sendo agora o CCJE o
destinatário da citação, conclui-se que o Ministério Público cometeu um grave
equívoco ao reconhecer a existência de uma nulidade por falta de citação do
réu, quando tal não era o caso. Optou por contrariar diretamente a letra da lei
vigente nos artigos 11º/1 e 25º/4 do CPTA, propondo uma solução que, na
prática, é inconstitucional. Apesar de essa solução ser consonante com a
redação anterior do CPTA, o regime em vigor atualmente é distinto. Assim,
considerando que a letra do CPTA não retroage, este recurso exemplifica que,
por vezes, um Digno Magistrado do Ministério Público pode desviar-se da
legalidade estabelecida na legislação administrativa.
A questão crucial residia em determinar se as disposições
constantes do segmento final do parágrafo 1 do artigo 11º e do parágrafo 4 do
artigo 25º do CPTA, na redação conferida pela Lei nº 118/2019, de 17 de
setembro, deveriam ter sido desconsideradas por serem materialmente
inconstitucionais. Isto levanta a dúvida se, em vez de a citação ter sido
direcionada ao CCJE, deveria ter sido dirigida ao Ministério Público, uma vez
que é este quem deve representar, na ação, o demandado Estado Português.
Conforme o requerimento apresentado pelo Ministério Público,
a questão não se resume apenas à conformidade constitucional de cada uma das
normas quando lidas de modo isolado, mas sim ao sentido que se extrai da sua
aplicação conjunta, no sentido de esvaziar os poderes de representação do
Estado pelo Ministério Público. Nesse contexto, o Ministério Público tentou
contornar a nova redação do artigo 11º/1 do CPTA; no entanto, não resta outra
opção senão acatar a lei, independentemente de concordar ou não com o teor do
dispositivo legal.
Resta salientar que o recurso foi, naturalmente, indeferido
pelo Tribunal Central Administrativo do Norte.
Após esta análise jurisprudencial, que demonstra a falta de
consenso sobre o tema, ao contrário da posição do Digno Magistrado do
Ministério Público no caso apresentado, a doutrina, que anteriormente
questionava e desaprovava a solução prevista no artigo 11º/1 do CPTA,
atualmente elogia o legislador por introduzir uma flexibilidade necessária,
permitindo ao Estado avaliar, em cada situação, qual é a solução mais
apropriada.
Segundo a professora ALEXANDRA LEITÃO, o Ministério Público
é, de fato, um órgão do Estado, mas não é um órgão da pessoa coletiva Estado
ou, em outras palavras, do Estado-Administração, que é aquele representado em
ações cíveis e administrativas. Pelo contrário, trata-se de um órgão que se
integra, sob o princípio da separação orgânico-funcional de poderes, na função
judicial do Estado, conforme evidenciado pela sua inserção sistemática no
Título V da Constituição, dedicado aos Tribunais. Nessa perspetiva, quando o
Ministério Público instaura uma ação em nome do Estado, faz isso sempre por
solicitação do órgão que representa organicamente o Estado no caso em questão.
Contudo, isso decorre do fato de ser uma representação legal e de a lei
determinar que assim seja. Esta é a posição fundamental do Ministério Público
no nosso ordenamento jurídico.
Portanto, do meu ponto de vista, é inegável que o Ministério
Público desempenha um papel fundamental no processo administrativo. Em primeiro
lugar, porque não apenas supervisiona o cumprimento da lei, mas também defende
os interesses dos indivíduos e da comunidade. Além disso, promove um processo
administrativo mais equitativo, atuando como guardião dos direitos fundamentais
e dos valores constitucionalmente protegidos, tanto de cada indivíduo quanto da
comunidade.
O Ministério Público é caracterizado, nas palavras de
SÉRVULO CORREIA, pela sua unidade orgânica, pela multiplicidade de funções e
pela prossecução de diferentes interesses públicos.
No entanto, há uma falta de um quadro de magistrados do
Ministério Público adequado às funções relevantes no âmbito dos processos
administrativos. Conforme salienta o Secretário-Geral do SMMP[4],
Adão Carvalho, essa escassez deve ser enfrentada e prevenida durante a fixação
das vagas de acesso ao Centro de Estudos Judiciários para o Ministério Público,
levando em consideração que, ao contrário dos juízes, o mesmo corpo de
magistrados desempenha funções tanto na jurisdição administrativa quanto na
jurisdição comum.
Considerando tudo o que foi exposto, é imperativo buscar uma
solução mais eficaz que salvaguarde a posição do Ministério Público no processo
administrativo, reconhecendo sua importância, ao mesmo tempo em que aborda a
carência de um corpo de magistrados do Ministério Público especializado em
processos administrativos. Uma possível solução poderia envolver a adoção de
uma divisão semelhante à existente entre as jurisdições administrativas e comum
para os magistrados, semelhante à divisão já estabelecida para os juízes. Isso
garantiria que tanto o juiz quanto o magistrado do Ministério Público em casos
específicos de contencioso administrativo possuíssem uma preparação e formação
equivalentes para desempenhar adequadamente suas funções. Dessa forma, talvez seja
possível alcançar uma solução mais viável a longo prazo, em vez de se alterar
sistematicamente a letra da lei.
Bibliografia:
- Acórdão do Tribunal
Central Administrativo Norte, 03-07-2020, Processo Nº 00902/19.2BEPNF-S1
- AROSO DE ALMEIDA, Mário
(2019). Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais
Administrativos introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro,
in e-Pública Vol. 6 No. 3, dezembro 2019 (016-030) 18-20
- CARVALHO, ADÃO, “O Papel
do Ministério Público no contencioso administrativo”, Visão,
13/07/2020 https://visao.sapo.pt/opiniao/2020-07-13-o-papel-do-ministerio-publico-no-contencioso-administrativo/
- DOS SANTOS SILVA, Cláudia
Alexandra (2016). O ministério público no atual contencioso
administrativo português, in e-Pública Vol. 3 No. 1, abril 2016
(165-183)
- LEITÃO, Alexandra (2013). A
Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais
Administrativos, in JULGAR - N.º 20 – 2013, Coimbra Editora
Joana Fonseca
Nº 62870
4º ano turma A subturma
6
[1] Ações essas
que, na análise do professor Mário Aroso de Almeida, são consideradas
sucessoras do antigo recurso contencioso. Até 2015, esse recurso correspondia
ao âmbito da ação administrativa especial e não era intentado, conforme o
disposto no n.º 2 do artigo 10.º, contra o Estado, mas sim contra os
Ministérios aos quais os atos ou omissões são imputáveis.
[2] Quanto a
estas ações, o professor Mário Aroso de Almeida entende que são sucessoras do
velho contencioso das ações, cujo âmbito correspondia, até 2015, ao da ação
administrativa comum e que são propostas contra o Estado, quando a este digam
respeito.
[3] Centro de
Competências Jurídicas do Estado
[4] Sindicato
dos Magistrados do Ministério Público
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