I. Introdução
A temática da anulação administrativa de atos adquire
especial relevância no contexto de um Estado de Direito, que tem como um dos
seus pilares fundamentais o Princípio da Legalidade. Este princípio exige, por
sua vez, que a Administração Pública atue sempre em conformidade com a lei,
subordinando-se a esta. Desde modo, o Princípio da Legalidade assume-se como
simultaneamente um limite à atuação administrativa e uma garantia de justiça
para os particulares, uma vez que limita os seus poderes e garante a proteção
dos direitos dos cidadãos.
Pela circunstância de que a anulação de atos administrativos
interfere com a estabilidade das relações jurídicas e na previsibilidade das
ações administrativas, há uma verdadeira necessidade de ponderação entre a
necessidade de anulação e a proteção de terceiros. No ordenamento jurídico
português, é configurado, de forma clara, a titularidade dos particulares de
posições jurídicas de conteúdo substantivo perante os poderes públicos e, em
particular, perante a Administração. Nesse sentido, resulta que os particulares
podem ser titulares de direitos subjetivos e de interesses legalmente
protegidos. E é no respeito por estes que a atuação administrativa se deve
desenvolver, ou seja, no sentido da prossecução do interesse público, de acordo
com o artigo 266.º CRP, e, é com base na defesa desses mesmos direitos, que se
reconhece aos titulares o direito de participarem na formação das decisões
administrativas que a eles dizem respeito (segundo o artigo 267.ºCRP) e, em
caso disso, lançarem mão da tutela que é proporcionada pela jurisdição dos
tribunais administrativos para a defesa dos mesmos.
Deste modo, o presente post propõe-se, fundamentadamente,
abordar a questão sobre como a anulação administrativa pode desencadear um
“efeito borboleta” de consequências imprevisíveis aos particulares. Pretende,
sobretudo, realçar a importância de assegurar a proteção da confiança dos
cidadãos, quando atuam com base nesses mesmos atos, como elemento crucial para
alcançar um equilíbrio entre o respeito pelo Princípio da Legalidade e o
Princípio da Segurança Jurídica. A proteção da confiança constitui, neste contexto,
um mecanismo fundamental para equilibrar os poderes da Administração Pública
com os direitos e interesses dos particulares, evitando que a instabilidade
criada pela anulação administrativa de atos administrativos resulte em
danos/prejuízos irreparáveis ou extremamente onerosos para estes.
Cabe agora, sim, dizer que, anular um ato administrativo,
nada mais é do que destruir os efeitos jurídicos por este produzido, com causa
em invalidade, segundo o que nos diz o artigo 165.º do CPA. De modo sumário,
esta pode ser tanto administrativa, quando seja concretizada por ato praticado
por órgão administrativo, como judicial, quando concretizada por decisão de um
tribunal. Pode também ser oficiosa ou requerida, consoante a iniciativa da
anulação decorra de órgão competente, ou seja, solicitada por um particular
interessado. Estes últimos podem requerer a anulação perante a própria
Administração ou perante o tribunal administrativo competente, dentro dos
prazos estabelecidos pela lei, segundo o art 163.º CPA.
De acordo com o professor MARIO AROSO DE ALMEIDA, o ato
administrativo, funciona como um «instrumento de rápida e estável definição das
situações jurídicas, no interesse da segurança jurídica e, em especial, da
confiança dos interessados na constituição de posições de vantagens». Portanto,
continua a ser um instrumento imprescindível de atuação das autoridades
administrativas na tomada de decisões que dão resposta a pretensões individuais
ou envolvem intervenções pontuais na esfera de terceiros (qualificação não
totalmente rigorosa), sejam eles públicas ou privadas.
Uma vez anulado, os efeitos dos atos são destruídos
retroativamente e a Administração fica constituída no dever de reconstituir a
situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, bem como e
dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento naquele mesmo
ato. Até ser anulado, o ato anulável produz efeitos jurídicos, até estes serem
destruídos com eficácia retroativa, por anulação administrativo ou judicial.
Referir que, a anulação deve revestir a forma legalmente prescrita para o ato
revogado ou anulado.
II.
Evolução histórica
A revogação de atos administrativos inválidos, outrora
designada como revogação anulatória, foi objeto de significativas alterações ao
longo da evolução do regime jurídico-administrativo em Portugal. Sob a égide do
Código do Procedimento Administrativo de 1991, vigorava a ideia de que os atos
administrativos inválidos se tornavam insuscetíveis de revogação uma vez
decorrido o prazo do recurso contencioso. Este entendimento baseava-se no
pressuposto de que o decurso desse prazo operava a convalidação da invalidade
do ato, transformando-o em ato válido, que não poderia mais ser revogado com
fundamento na irregularidade que anteriormente apresentava.
Nesse contexto, a irrevogabilidade dos atos constitutivos de
direitos fundamentava-se essencialmente na tutela do princípio da legalidade, e
não propriamente no princípio da tutela da confiança. Ou seja, a proteção
conferida a tais atos visava assegurar o respeito pela estabilidade e certeza
jurídicas, independentemente da confiança que os beneficiários pudessem ter
depositado na validade desses atos.
A reforma do Código do Procedimento Administrativo veio,
contudo, introduzir mudanças relevantes nesse regime, promovendo uma maior
flexibilidade e adequação às exigências contemporâneas de justiça
administrativa. Passou a admitir-se, mesmo após o decurso do prazo de
impugnação, a anulação de atos administrativos favoráveis cujos beneficiários
tenham utilizado de forma abusiva ou ilegítima, não podendo, assim, invocar a
proteção da confiança. Este novo paradigma reflete uma ponderação mais
equilibrada entre os princípios da juridicidade, da tutela da confiança e da
proporcionalidade.
Outra inovação crucial introduzida pela reforma foi a
consagração expressa do direito à tutela indemnizatória para os beneficiários
que, sem culpa, confiaram na manutenção de um ato administrativo ilegal na
ordem jurídica. Esta proteção visa compensar os danos causados pela anulação do
ato, assegurando um equilíbrio entre a necessidade de correção de atos
administrativos inválidos e a proteção dos direitos e expectativas legítimas
dos particulares.
Adicionalmente, a reforma flexibilizou os efeitos temporais
da anulação de atos administrativos, permitindo que, em certos casos, esta
produza efeitos apenas para o futuro. Essa medida é particularmente relevante
para os atos que se tornaram impugnáveis ou in()impugnáveis por via
jurisdicional, reconhecendo a necessidade de adaptar a resposta jurídica às
especificidades de cada situação concreta, mitigando os impactos disruptivos
que poderiam advir de uma anulação com efeitos retroativos.
Com estas alterações, o ordenamento jurídico-administrativo
português evoluiu no sentido de uma maior harmonização entre a segurança
jurídica, a justiça e a eficácia da Administração Pública.
III.
Eficácia interna e Eficácia externa do
ato administrativo
A eficácia, prende-se às consequências jurídicas dos atos
administrativos. É crucial fazer a distinção entre eficácia externa e interna
do ato.
A eficácia externa refere-se aos efeitos externos que se
produzem como resultado da fase integrativa da eficácia do procedimento
administrativo e implica que o ato se torne uma realidade jurídica que deve ser
considerada pelo destinatário. É a partir dessa eficácia que se cria e
estabelece a relação jurídica entre a administração e o particular, gerando as
consequências jurídicas associadas à prática do ato administrativo. Como
exemplo, destaca-se a possibilidade de a Administração anular os seus próprios
atos, ou a definição do momento a partir do qual o ato se torna (in)impugnável,
tanto administrativa como contenciosamente.
É importante ressaltar que a eficácia jurídica externa é um
pressuposto da executoriedade do ato administrativo, mas não deverá ser
confundida com esta. A eficácia não implica, necessariamente, a entrada em
vigor dos efeitos jurídicos do ato, mas constitui um pressuposto jurídico para
tal.
Por outro lado, a eficácia interna do ato está relacionada
com a força vinculativa do conteúdo regulador do ato administrativo. Diz
respeito à eficácia material e reguladora do ato, que se manifesta na
obrigatoriedade jurídica imposta pelo seu conteúdo regulador como condição para
a sua existência.
Geralmente, estes dois tipos de eficácia jurídica
produzem-se, simultaneamente, com a notificação ou publicação do ato
administrativo. Contudo, há exceções. É o que acontece quando o ato
administrativo está sujeito a condição ou termo, verifica-se que o ato possui
eficácia interna, mas carece de eficácia externa. Isso acontece porque o seu
conteúdo ainda não é vinculativo, dado que os efeitos jurídico-materiais e a
regulação prevista pelo ato ainda não foram produzidos.
A distinção entre os dois tipos de eficácia é essencial. Um
ato administrativo é considerado (in)impugnável não pela inexistência de
eficácia externa, mas sim pela falta de eficácia externa. Todavia, sustenta-se
que a norma que estabelece um momento diferente da notificação ou publicação
para o início da produção de efeitos jurídicos faz parte do próprio conteúdo
material e regulador do ato administrativo, de forma que o momento em que se
produziriam os dois tipos de eficácia seria precisamente o mesmo. Já no caso
dos atos nulos, estes podem ser eficazes no plano externo (desde que
devidamente notificados), mas nunca alcançarão eficácia interna, uma vez que a
sua nulidade impede que adquiram qualquer força vinculativa ou capacidade
reguladora no âmbito jurídico.
IV.
Natureza do poder de anulação
administrativa: Poder vinculado ou discricionário?
Esta é uma questão que gera bastante controvérsia. Por um
lado, há quem sustente que a anulação é um poder discricionário; há quem
entenda, por outro, que é um poder vinculado e, ainda, surge .um terceiro grupo
de opiniões que entende ser um poder vinculado à juridicidade. Esta é uma
questão relevante no sentido em que a problemática da natureza da anulação
administrativa de atos administrativos, depende do entendimento que se adote
quando ao próprio sentido da vinculação Administração Pública para com o Direito,
considerando o princípio da juridicidade.
Em primeiro lugar, considerando a letra da lei, parece
resultar do artigo 168.º CPA a intenção do legislador no sentido de não
reconhecer uma obrigação estritamente vinculada da anulação. Este entendimento,
decorre, essencialmente, na escolha de palavras feita pelo legislador, tendo
sido preferido a utilização do verbo “poder”, em vez de “dever”
ou de “ter de ser”. Contudo, não parece certo ter sido a intenção do
legislador atribuir caráter discricionário à anulação administrativa. E, neste
sentido, vai o Professor MARIO DE AROSO DE ALMEIDA, que invoca o facto de que
aquilo que o artigo 168.º apenas regula, exclusivamente, são os
condicionalismos aplicáveis à anulação, não servindo como resposta, do
legislador, à questão da natureza da anulação administrativa.
De forma muito sintética, dizer que se a anulação
corresponder ao exercício de um poder discricionário, isto implica que a
Administração não está obrigada a anular o ato, mesmo quando confrontado com o
interesse público. Assim, em última análise, a Administração teria a faculdade
de decidir revogar ou manter aquele ato em concreto.
Para os defensores da segunda tese, a Administração
encontra-se intimamente ligada ao princípio da legalidade (ou seja, vinculada à
lei), pelo que, segundo esta vertente, a Administração Pública tem um
verdadeiro dever de anular os atos administrativos que se apresentarem como
inválidos. Uma verdadeira obrigação de repor a legalidade, isto
independentemente, de qualquer consideração sobre o interesse público.
Ambas as perspetivas evoluíram no sentido em que, do lado de
quem sustenta que a anulação é um poder vinculado, esta deve apenas ocorrer se
não for possível sanar, ratificar ou convalidar o ato inválido, isto é, senão
conseguir salvaguardar a legalidade do ato. Defende-se, ainda, a existência de
uma “clausula de salvaguarda” em situações excecionais, onde a anulação seria
juridicamente impossível para proteger direitos fundamentais dos beneficiários
do ato. Do lado de quem sustenta a discricionariedade, defende-se que esta
discricionariedade se analisa, segundo a professora FILIPA CALVÃO, na
ponderação dos interesses públicos e privados envolvidos, por aplicação dos
princípios da proporcionalidade e da boa-fé ou, segundo o professor P. MONIZ
LOPES, um juízo ponderativo entre a confiança legítima e um interesse público
concreto na revogação do ato inválido. Para além disso, segundo o professor
VIEIRA DE ANDRADE, a anulação pode ser vista como um poder discricionário
condicionado ao interesse público e aos princípios gerais de direito, incluindo
a proteção da confiança.
Posto isto, cabe, portanto, dizer que a anulação
administrativa não pode ser encarada, em primeiro lugar, como um puro poder
discricionário, porque seria uma própria contrariedade ao princípio da
legalidade. Não é concebível que a Administração disponha da faculdade, com
base exclusivamente no seu entendimento concreto, de anular atos
administrativos. Este princípio não seria tutelado, o que não se configura como
aceitável num Estado de Direito. Em segundo lugar, mesmo para os que sustentam
a anulação administrativa como poder discricionário, embora traduzido na
realização de uma operação de ponderação entre os princípios que regem a
atividade administrativa, não retratam o alcance do poder de anulação. Isto por
duas ordens de razões. Por um lado, porque este exercício de ponderação em nada
se assemelha com o poder discricionário. Aplica-se, pois, o princípio da
proporcionalidade para resolver o conflito de princípios, à luz das
circunstâncias do caso concreto, em vista à extração de uma única solução juridicamente
correta. Em situações de empate, parece dever prevalecer o princípio da
legalidade. Por outro lado, os autores defensores desta tese, para além de
reconhecerem que devem ser respeitados os princípios jurídicos, sublinham que o
elemento decisivo da anulação é o de saber se existe um interesse público atual
e concreto que justifique, claramente, o exercício daquele poder. Isto é
altamente criticado, tendo em consideração o princípio da legalidade exige que
a Administração anule atos administrativos inválidos, independentemente da
existência de um interesse público específico. A anulação é, pois, uma
exigência para corrigir a violação da legalidade. O professor COLAÇO ANTUNES,
destaca uma incoerência em defender que a anulação é distinta da revogação (que
por sua vez, visa o interesse público), mas depois afirmar a dependência da
anulação à satisfação de interesses públicos.
Também a perspetiva da anulação administrativa como poder
vinculado e, portanto, como obrigação estritamente vinculada, não parece ser
preferível. Como anteriormente referido, encara o poder de anulação como se não
restasse à Administração outra alternativa que não fosse a de anular o ato
administrativo ilegal dentro do prazo legalmente previsto, independentemente
das ponderações impostas pelo princípio da tutela da confiança ou pelo
princípio da proporcionalidade. Ora, se não se considerar a situação da confiança
legítima do particular de boa-fé, que confiou e planeou a sua vida com base
naquele ato, e se o reconduzir para uma mera tutela indemnizatória,
constitui-se uma clara desconformidade constitucional.
Assim, concluindo a discussão doutrinal, pensa-se que a
melhor perspetiva será a perspetiva do poder de anulação como um poder
vinculado à juridicidade, ou seja, um comando dirigido à Administração para, no
caso concreto, na tarefa de reconstituição da legalidade violada, harmonizar os
princípios jurídicos que vinculam a atividade administrativa, no âmbito da
vinculação genérica da atividade administrativa ao Direito.
V.
Como a Administração compatibiliza o
Princípio da Legalidade e o Princípio da tutela da confiança?
Cabe à Administração compatibilizar as exigências do
princípio da legalidade com as decorrentes do princípio da tutela da confiança,
no respeito pelo princípio da proporcionalidade.
Em primeiro lugar, confrontados com atos administrativos em
relação aos quais não foi foram depositados quaisquer investimentos de
confiança, por parte dos particulares, a Administração, tem o dever de anular
esses mesmos atos, produzindo-se o efeito típico ex tunc da anulação. Quer isto
dizer que, ao ser anulado, o ato é considerado juridicamente inexistente desde
o momento em que foi praticado, já que anulação retroage à data da emissão do
ato, como se ele nunca tivesse produzido quaisquer efeitos jurídicos válidos.
Em segundo lugar, ocorridos já investimentos de confiança,
tudo depende da intensidade desse mesmo investimento e da natureza dos
interesses públicos e privados envolvidos. A tutela faz-se a três níveis.
Para as situações de confiança de grau máximo, portanto,
para situações em que os particulares investiram, de tal forma, a sua confiança
que a anulação os coloca numa situação de extrema onerosidade ou estejamos numa
situação em que haja impossibilidade de reversão da situação de confiança, pode
optar-se pela manutenção dos atos constitutivos de direitos inválidos. Ainda
que não decorra expressamente esta previsão do CPA, esta falta expressa não
parece obstar a que se retire esta possibilidade se perspetivarmos o exercício
do poder de anulação como vinculado à juridicidade e não apenas ao princípio da
legalidade. Ainda assim, se se considerar que os interesses públicos devam
afastar o ato ilegal, pode admitir-se que com a anulação do ato se tutele, de
forma indemnizatória, cobrindo, assim, o interesse contratual positivo ( que se
refere à compensação que coloca o lesado na posição em que se encontraria caso
o ato fosse válido e executado corretamente). Por conseguinte, para as
situações de confiança de grau intermédio (relativamente aos atos com eficácia
duradoura), pode optar-se pela anulação com eficácia apenas para o futuro. Por
fim, para os casos em que a tutela da confiança não se sobreponha à normal
exigência de reposição da legalidade violada, a forma de compatibilizar será
através da tutela indemnizatória. Deve, nesta situação, a Administração anular
e indemnizar os beneficiários de boa-fé. Obviamente, que esta ponderação deve
sempre atender ao princípio da proporcionalidade, pesando, por um lado, a intensidade
da confiança depositada naquele ato em concreto, como já se referiu, bem como a
importância dos interesses subjacentes à reposição da legalidade,
designadamente com estão em causa interesses públicos com dignidade
constitucional.
i)
Quanto à indemnização do dano da
confiança;
Nos termos do artigo 168.º, nº6 do CPA, o beneficiário do
ato administrativo ilegal, anulado administrativamente, tem direito a ser
indemnizado, desde que desconhecesse, sem culpa, a invalidade do ato e tenha
confiado na sua manutenção. Ora, segundo o Princípio da juridicidade, para que
a anulação tenha lugar, é imprescindível uma primária ponderação com os
princípios da tutela da confiança e de proporcionalidade. Caso isto não
aconteça, não é tolerável a anulação do ato em causa.
No caso de se proceder à anulação de um ato constitutivo de
direitos, em compatibilidade com a tutela da confiança, o CPA restringe o
alcance da indemnização à reparação dos denominados danos anormais «a anulação
administrativa de atos constitutivos de direitos constitui os beneficiários que
desconhecessem sem culpa a existência da invalidade e tenham auferido, tirado
partido ou feito uso da posição de vantagem em que o ato os colocava, no
direito de serem indemnizados pelos danos anormais que sofram em consequência
da anulação» (nos termos do artigo 168.º, nº6 do CPA). Nos termos do art. 2.º
da Lei n.º67/2007, de 31 de dezembro (Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e das demais Entidades Públicas, conceitualiza danos
anormais como «os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade,
mereçam, pela sua gravidade , a tutela do direito.» Os danos normais, por sua
vez, são aqueles que o particular suportaria inevitavelmente na sua relação com
a Administração, independentemente de atuação ilegal desta. Ou seja, seriam
danos normais os danos que não resultam especificamente da confiança criadas
nos particulares, mas que decorram desta relação jurídico-administrativa destes
para com a Administração.
No que respeita à
extensão dos danos indemnizáveis, a regra geral para a reparação do dano de
confiança consiste em colocar o lesado na situação em que estaria caso não
tivesse confiado na Administração (tutela negativa da confiança), e não na
posição em que teria se o ato fosse válido. Contudo, em casos excecionais, pode
ser indemnizado o valor correspondente à vantagem perdida, se o grau de
confiança for particularmente elevado, conduzindo a uma situação de excessiva
onerosidade ou impossibilidade de reversão da situação de confiança.
ii)
Investimento da confiança
Este conceito manifesta-se tanto nas situações em relação às
quais o beneficiário do ato exerceu o direito que lhe foi conferido, como
também naquelas em que o beneficiário, embora não tenha feito uso da vantagem
ou do bem proporcionado pelo ato, adotou comportamentos ou tomou decisões que
decorrem diretamente dessa atribuição.
O investimento da confiança pode mesmo materializar-se
através de uma conduta omissiva, ou seja, ter como resultado a não realização
de um negócio, a aquisição de um bem, a não aceitação de uma oferta de emprego.
Em todas estas casos, verifica-se um investimento da confiança depositada na
prática de atos administrativos, com escolhas realizadas em função dos mesmo.
Assim, torna-se imprescindível proteger eventuais danos que sejam merecedores
de reparação, com fundamento no princípio da tutela da confiança.
iii)
Desconhecimento não culposo da invalidade
do ato
Quanto a este requisito, não se pode exigir de um cidadão
comum o conhecimento de todo o conjunto normativo, nem, muito menos, que possua
domínio técnico-jurídico. Neste contexto, não é razoável esperar que um cidadão
desconfie da validade de atos administrativos que lhe são unilateralmente
dirigidos por uma entidade pública, na qual é absolutamente compreensível que
confie. Por essa razão, não se poderá exigir do particular o conhecimento da
invalidade do ato na maioria das situações. O cenário altera-se quando nos
referimos a operadores económicos, agentes ou profissionais de um setor
específico, que normalmente estão familiarizados com a legislação aplicável à
sua atividade. A exigência de conhecimento apenas se coloca perante
ilegalidades inequívocas, e não em face de questões jurídicas controversas ou
de interpretação complexa. Na dúvida ou perante situações de maior dificuldade
interpretativa, é perfeitamente legítimo que os operadores económicos confiem
na validade dos atos administrativos.
VI.
Conclusão
Em suma, a anulação administrativa de atos não se resume a
uma simples e modesta correção de ilegalidades, mas envolve também a
consideração dos impactos sobre os direitos e a confiança depositada pelos
particulares. A evolução histórica do regime jurídico no âmbito da anulação,
desde as primeiras conceções até ao modelo atual, reflete um esforço continuado
de adaptação e equilíbrio entre os princípios da legalidade e da segurança
jurídica, tendo em conta, simultaneamente, a proteção dos direitos dos particulares.
O poder de anulação, embora vinculado à juridicidade e à
manutenção da ordem pública, exige uma ponderação cuidadosa com o princípio da
legítima confiança dos cidadãos. A partir da noção de que os particulares podem
ser levados a confiar em atos administrativos, a anulação de tais atos não pode
ocorrer sem que se considerem as consequências para esses particulares,
sobretudo quando estes tenham investido de boa-fé nas expectativas geradas por
esses atos. A tutela da confiança, através de mecanismos indemnizatórios,
surge, assim, como um importante contrapeso que visa proteger os cidadãos
contra prejuízos irreparáveis causados por atos administrativos que se revelem
posteriormente inválidos.
Além disso, a flexibilidade introduzida na forma de
anulação, como a possibilidade de efeitos retroativos ou futuros, vem
possibilitar uma melhor adaptação às circunstâncias específicas de cada caso,
atendendo à intensidade do investimento de confiança e ao grau de interesse
público envolvido. No entanto, é necessário um equilíbrio delicado, pois o
respeito pelo princípio da legalidade e pela reconstituição da legalidade
violada não pode ser sacrificado em nome da proteção da confiança, caso esta
não tenha sido substancialmente justificada.
A interdependência entre os princípios da legalidade, da
segurança jurídica e da tutela da confiança reflete a complexidade da atuação
administrativa. Cabe à Administração Pública, ao decidir sobre a anulação de
atos, realizar uma ponderação equilibrada e fundamentada, tendo sempre presente
a sua obrigação de garantir que os direitos dos cidadãos não sejam colocados em
risco de forma desproporcional. Em última análise, o objetivo da anulação
administrativa deve ser sempre a manutenção da confiança na Administração
Pública, ao mesmo tempo que se assegura a correção das ilegalidades, sempre com
respeito pelos princípios constitucionais que orientam a atuação da
Administração no Estado de Direito. A anulação administrativa deve ser vista,
efetivamente, como uma decisão reflexível do compromisso da Administração com a
legalidade e justiça.
VII.
Bibliografia
ALMEIDA, M. Aroso de, 2018, Teoria Geral do Direito
Administrativo, 5ª edição, Almedina, Coimbra.
MACIEIRINHA, Tiago, Ainda sobre a anulação administrativa
e a tutela da confiança dos particulares, Católica Law Review, Volume III,
nº1, janeiro 2019
Código do Procedimento Administrativo, 2023 (7ª ed.)
Almedina
Joana Fonseca, nº 62870
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