Monday, December 9, 2024

Legitimidade Ativa das Associações Sindicais

 

A propositura de uma ação judicial requer a verificação de pressupostos processuais, ou seja, condições essenciais para que o Tribunal possa conhecer do mérito da causa. No âmbito do processo administrativo, destacam-se relativamente às partes, a personalidade e capacidade judiciária (art.8º-A do CPTA), o patrocínio forense e a representação judiciária (art.11º do CPTA e art.41º e 44º do CPC) e a legitimidade processual (art.9º e 10º do CPTA) - requisitos cumulativos. A ausência de algum destes elementos dará origem a uma exceção dilatória o que, em última análise, pode levar à absolvição da instância, impedindo o conhecimento do mérito da causa (art.89º do CPTA). 

 

Dentro do campo da legitimidade, pressuposto previsto amplamente nos artigos 9º e 10º do CPTA temos, respetivamente, duas modalidades: legitimidade ativa, atribuída ao demandante (o autor da ação) e, legitimidade passiva, atribuida à entidade contra quem se formula a ação. Relativamente à legitimidade ativa, o n.º 1 do art.9º estabelece uma regra geral, segundo a qual o autor tem legitimidade desde que alegue ser parte na relação material controvertida. Contudo, esta norma, de carácter genérico, acaba por ser “derrogada” por regimes especiais aplicáveis às diferentes modalidades de ações previstas no CPTA (art.55º, 57º, 73º e 77º-A). 

Além disso, o n.º 2 do art.9º alarga, a priori, o já bastante amplo regime do n.º 1, permitindo a propositura de ações baseadas na defesa de interesses difusos, “destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”. 

 

O critério geral estabelecido no n.º 1 revela-se de carácter residual face às regras especiais de legitimidade ativa estabelecidas ao longo do código. Mas, tal como explica Mário Aroso de Almeida, a existência deste regime geral justifica-se pela “(...) circunstância de o pressuposto processual da legitimidade não ser um pressuposto que se reporta, em abstrato, à pessoa do autor ou do demandado, mas um pressuposto cujo preenchimento se afere em função da concreta relação que (alegadamente) se estabelece entre essas pessoas e uma ação com o objeto determinado (...)”. Sendo que, posteriormente, nos regimes especiais assistimos a um alargamento e concretização deste preceito, o que permite a adaptação da legitimidade ativa à especificidade de cada ação. 

 

O art.55º estabelece o regime especial de legitimidade ativa aplicável às ações de impugnação de ato administrativo. Este preceito confere vários títulos de legitimidade, com base em diferentes tipos de interesse. 

Na primeira alínea, o artigo confere legitimidade a “quem alegue ser titular de interesse direto e pessoal”, critério que tem sido bastante comentado e discutido tanto na doutrina como na jurisprudência. Contudo, penso que Vieira de Andrade explica de forma clara este preceito, razão pela qual o cito: “(...) quem retire imediatamente (diretamente) da anulação ou declaração de nulidade um benefício específico para a sua esfera jurídica (pessoal), mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjetiva lesada (...)”[1].   

              Além disso, atribui-se legitimidade aos casos em que exista um interesse público, subjetivado no interesse próprio do Estado e dos demais entes territoriais regionais e locais. Este regime abrange tanto as pessoas coletivas públicas, no contexto das relações jurídicas interadministrativas (cfr alínea c)), como o Ministério Público, no exercício da ação pública em defesa do interesse geral da legalidade. 

Prevê ainda a tutela de interesses difusos interesses coletivos. Um interesse difuso é entendido como um interesse globalmente útil a um grupo indeterminado de cidadãos, necessariamente ligado a um bem jurídico constitucionalmente protegido. Tal interesse pode ser representado por qualquer entidade nos termos do art.9º, n.º 2 do CPTA, através da denominada ação popular (regulada pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto).Por sua vez, o interesse coletivo caracteriza-se como um “interesse particular comum a certos grupos ou categorias organizadas de cidadãos” relacionado com determinados valores jurídico-económicos ou sócio-profissionais”. 

 

Com base nesta informação, centrar-nos-emos na alínea c) do art.55º do CPTA, com particular destaque para legitimidade ativa das associações sindicais. 

Importa referir, a título de nota que, com a reforma de 2015, este preceito sofreu uma alteração terminológica, substituindo a expressão “Pessoas públicas e privadas” por “Entidades públicas e privadas”. Esta mudança não teve como objetivo modificar o regime da legitimidade, apenas visou clarificar a sua aplicação, sobretudo no que diz respeito à legitimidade ativa das entidades administrativas sem personalidade jurídica, como certas entidades jurídicas independentes. 

 

No início da alínea c) encontramos uma manifestação do interesse público como fundamento da legitimidade ativa no âmbito das relações interorgânicas. Contudo, este preceito também confere legitimidade a entidades privadas com base em outros tipos de interesse. 

Para clarificar o conceito de “entidades privadas”, este abrange pessoas coletivas de substrato associativo ou fundacional, societário ou corporativo, que atuem no âmbito da sua esfera de interesses, conforme definido por lei estatutária. 

 

Ora, direcionando a análise para a legitimidade ativa das associações sindicais, verifica-se que esta encontra suporte constitucional e legal no direito à associação, consagrado como direito fundamental no art.46º da Constituição da República Portuguesa (CRP), encontrando-se igualmente positivado, em âmbito laboral, no art.440º do Código do Trabalho (CT). Deste modo, “os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”.

Assim, o direito à associação justifica e fundamenta a legitimidade atribuída a entidades como associações sindicais (ou outras associações representativas) que, no âmbito de relações jurídico-administrativas, atuam em defesa de interesses coletivos difusos. 

 

Acrescenta-se, com base no art.56º da CRP, 442/1/a) do CT e ainda 338/2 da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, a existência de uma legitimidade própria ou intrínseca atribuída às associações sindicais. Este quadro normativo é entendido pela doutrina no como um reforço afirmativo do papel destas entidades na defesa e promoção dos direitos e interesses dos trabalhadores.

A este respeito, Jorge Miranda e Rui Medeiros, no comentário ao art.56º da CRP, afirmam: “Às associações sindicais compete fundamentalmente defender e promover os direitos e interesses dos trabalhadores que representem, incluindo jurisdicionalmente ou em procedimentos administrativos”[2].

 

No entanto, surge aqui um problema: as associações sindicais, ao exercerem esta faculdade, frequentemente ultrapassam o âmbito estritamente laboral, intervindo em questões que, sem premeditação, transcendem os interesses exclusivos dos trabalhadores que representam. Neste sentido, como sintetiza Gomes Canotilho e Vital Moreira, “a ação sindical tem sempre externalidades (positivas e negativas) para além do círculo dos seus associados”[3] .

 

              Questiona-se ainda até onde vai a legitimidade destas associações, isto é, quais os interesses que podem tutelar. Como temos vindo a desenvolver, estas entidades têm legitimidade para defender interesses coletivos, ou seja, interesses comuns a vários trabalhadores. No entanto, surgem dúvidas quanto à possibilidade de defender coletivamente interesses individuais dos trabalhadores que representam. A jurisprudência maioritária, neste sentido, reconhece legitimidade tanto para a defesa de direitos e interesses coletivos, como para a defesa coletiva de direitos e interesses individuais. Contudo, esta questão continua a gerar controvérsia e não é consensual. 

              

              Este problema tem tido relevância prática em casos onde trabalhadores são afetados por matérias abrangidas por negociações coletivas, especialmente em situações que envolvem vínculos de emprego publico, conforme estabelecido no art.350º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. 

Neste sentido, há decisões que têm diferido a legitimidade das associações sindicais não com base nas matérias objeto do litígio, mas sim no número de associados que poderiam ser abrangidos pela decisão em questão. Podemos perceber, com base no que temos vindo a dizer que este entendimento é incorreto. A legitimidade deve ser atribuída às associações sindicais independentemente do número de associados afetados numa situação específica, desde que tenha na base a defesa de interesses afetos aos trabalhadores. Isto é particularmente evidente em matérias que envolvem a constituição, modificação e extinção de emprego público; recrutamento e seleção; tempo de trabalho; férias, faltas e licenças; remuneração e outras prestações pecuniárias, entre outras. Sendo indiscutível, nestes casos, a legitimidade das associações sindicais que, portanto, exercem a sua legitimidade intrínseca, conforme estabelecido no art.56º da CRP e 338º da LGTFP. 


              Esta interpretação, que consideramos incorreta, gera insegurança e inquietação, pois limita indevidamente a atuação das associações sindicais. Um exemplo deste problema encontra-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no processo n.º 07059/10, em que o tribunal entendeu que o Sindicato dos Professores não tinha legitimidade para intentar um processo urgente de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias.

O fundamento usado foi, ao “(...) defender os direitos ou expectativas de alguns dos seus associados vai prejudicar outros que obtiveram a classificação de «excelente» ou «muito bom»”. Assim, o tribunal concluiu que, como a questão objeto do processo não afetava todos os professores, ou seja, não se baseava num interesse coletivo, o sindicato carecia de legitimidade.

Contudo, este entendimento diverge da jurisprudência predominante e da que considero ser a correta interpretação do acalce da legitimidade ativa prevista no art.55º, n.º 1, alínea c) do CPTA. Independentemente do número de associados afetados, a questão em análise envolve a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos dos trabalhadores, inserindo-se no âmbito da legitimidade intrínseca das associações sindicais. Como exposto no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de dezembro de 2010, em sentido oposto, o interesse na legalidade de um concurso de professores, por violar os princípios da igualdade e do acesso à função pública, constitui claramente um interesse coletivo dos professores. Nesta linha, o STA reconheceu a legitimidade ativa do Sindicato dos Professores “para defender e fazer valer em juízo tal interesse”. 

 

Conclui-se, assim, que, tendo em vista o propósito intrínseco que subjaz à criação das associações sindicais - a proteção coletiva dos direitos e interesses dos seus membros -, então, estas devem ser consideradas partes legítimas para a defesa coletiva de direitos e interesses legalmente protegidos dos trabalhadores que representam. Tal legitimidade encontra fundamento, como abordado, no art.56º, n.º 1 da CRP e na legislação laboral aplicável, sendo amplamente reconhecida pela jurisprudência maioritária. 

 

 

 

Bibliografia: 

ANDRADE, José Carlos Vieira de. A Justiça Administrativa (Lições). 17.ª edição. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2019

 

ALMEIDA, Mário Aroso de. Manual de Processo Administrativo. 4.ª edição. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2020

 

Constituição Portuguesa Anotada, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, maio 2010, p. 1102 

 

https://snesup.pt/es/72/revista_72_73_legitimidade_associacoes_sindicais.pdf


https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a896ec4faa7990ce8025780a003e736e?OpenDocument 




Trabalho realizado por: 

Madalena Elias Marques

N.º de aluno: 66270 

 



[1] 2019, pa. 180

[2]Constituição Portuguesa Anotada, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, maio 2010, p. 1102

[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, p. 742 Editora, maio 2010, pag.742

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