Monday, December 9, 2024

A LEGITIMIDADE PASSIVA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

  A LEGITIMIDADE PASSIVA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO- análise do artigo 10º do CPTA

 

Introdução

O artigo 10.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) regula o regime da legitimidade passiva nos processos administrativos, determinando quais as entidades que podem ser demandadas em juízo, dependendo da natureza da relação jurídica controvertida e dos sujeitos envolvidos.

Este artigo estabelece um critério geral para identificar a parte passiva, bem como diversas regras específicas e exceções, considerando as características das ações intentadas contra entidades públicas e particulares no âmbito do contencioso administrativo. A norma também aborda questões como pluralidade de demandados, litisconsórcio e intervenção de terceiros, refletindo a complexidade das relações jurídico-administrativas.

O artigo, composto por múltiplos números, articula-se com outros diplomas legais, como o Código de Processo Civil (CPC) e o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEE), oferecendo uma abordagem abrangente para a definição das partes legítimas nos litígios administrativos.

 

ART. 10º

Parte da Relação Material Controvertida (n. º1)

O artigo 10.º, n.º 1, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), assim como o artigo 9.º, n.º 1, estabelece que a legitimidade passiva pertence à parte contrária na relação material controvertida, tal como configurada pelo autor. Esta norma, similar ao disposto no artigo 30.º do Código de Processo Civil (CPC), aplica-se a litígios que pressupõem a existência de uma relação jurídica entre as partes.

No entanto, na prática, a maioria das ações nos tribunais administrativos é proposta por pessoas ou entidades que não integravam uma relação jurídica preexistente. Essas situações decorrem de previsões normativas específicas do CPTA, como as contidas nos artigos 55.º, 68.º, n.º 2, 73.º, 77.º e 77.º-A do CPTA.

Geralmente, essas ações são dirigidas contra entidades públicas, ainda que possam ter como alvo sujeitos privados, como previsto no artigo 37.º, n.º 3, do CPTA.

De acordo com o artigo 57.º do CPTA, além da entidade autora do ato impugnado, devem ser obrigatoriamente demandados os contrainteressados que possam ser diretamente prejudicados pelo provimento da ação ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato. Esses contrainteressados devem ser identificados com base na relação material em causa ou nos documentos do processo administrativo. Situação similar ocorre, mutatis mutandis, em ações de condenação à prática de atos administrativos, conforme previsto no artigo 68.º, n.º 2 do CPTA.

O litisconsórcio necessário passivo não se limita aos casos envolvendo contrainteressados. Também se aplica em situações como: coautoria no ato impugnado; competência conjunta para a prática do ato omitido; impugnação de contratos por terceiros; ações de responsabilidade civil quando a responsabilidade é conjunta ou solidária.

 

Pessoa Coletiva de Direito Público (n. º2)

O n.º 2 do artigo 10.º do CPTA consagra uma regra e uma exceção. A regra é que os processos intentados contra entidades públicas, a parte demandada é a pessoa coletiva. A exceção será nos casos de ação ou omissão imputável a órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, a parte demandada será o ministério ou a secretaria regional responsável.

Adicionalmente, o n.º 4 considera regularmente proposta a ação cujo requerimento inicial tenha sido dirigido ao próprio órgão administrativo. Nesse caso, a ação prosseguirá como se fosse dirigida à pessoa coletiva de direito público correspondente.

Conforme o entendimento de Mário Aroso de Almeida e Gomes Canotilho, a exceção mencionada no n.º 2 abrange não apenas a impugnação de atos administrativos e a condenação à prática de atos devidos, mas também: a impugnação de normas; a condenação à emissão ou à não emissão de normas ou atos administrativos; a imposição de comportamentos à Administração Pública, incluindo a reparação de direitos ou interesses violados; a imposição do cumprimento de deveres de prestação, conforme disposto no artigo 37.º do CPTA.

A escolha de excecionar o Estado e as Regiões Autónomas do critério geral de legitimidade passiva pode estar relacionada à complexidade da sua organização administrativa.

 

Entidades Administrativas Independentes (n. º3)

O n.º 3 refere-se a entidades administrativas independentes sem personalidade jurídica. Estas são serviços ou organismos autónomos que, embora não possuam personalidade jurídica, dispõem de autonomia administrativa e/ou financeira, permitindo-lhes praticar atos administrativos. Como não possuem personalidade jurídica, as ações judiciais devem ser imputadas à pessoa coletiva pública a que pertencem.

Exemplos incluem o Provedor de Justiça, a Comissão Nacional de Eleições, a Comissão Nacional de Proteção de Dados, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Conselho das Finanças Públicas e o Conselho de Prevenção da Corrupção.

Por outro lado, serviços que possuem apenas autonomia administrativa, como o Gabinete de Gestão Financeira do Ministério da Justiça, seguem a regra geral do n.º 2, primeira parte.

Distintas destas são as autoridades administrativas independentes, responsáveis pela regulação de setores econômicos, como a ANACOM, a ERSE, o Banco de Portugal e a CMVM. Estas entidades, dotadas de personalidade jurídica, estão sujeitas à regra da legitimidade passiva prevista na primeira parte do n.º 2.

 

Regime Aplicável a Outros Órgãos do Estado

Embora não mencionados no artigo 10.º do CPTA, órgãos do Estado que não integram a Administração Pública, mas que praticam atos materialmente administrativos, exigem definição de regime de legitimidade passiva. Exemplos incluem: o Presidente da República; a Assembleia da República e seu Presidente; o Conselho de Ministros; o Tribunal Constitucional e seu Presidente; os Tribunais Superiores (STA, Tribunal de Contas e seus presidentes); o Conselho Superior de Defesa Nacional; o Procurador-Geral da República e o Conselho Superior do Ministério Público.

Como esses órgãos não se subordinam a ministérios específicos, o regime do n.º 2 não lhes é aplicável. Para Mário Aroso de Almeida e Gomes Canotilho, essas entidades devem ser equiparadas às entidades administrativas independentes, aplicando-se o regime do n.º 3 aos atos ou omissões de sua competência.

 

Sanação da Irregularidade na Identificação da Entidade Demandada (n. º4)

O n.º 4 do artigo 10.º do CPTA prevê a sanação ex lege da irregularidade decorrente da petição ser dirigida contra o órgão administrativo que praticou o ato impugnado, e não contra a pessoa coletiva pública a que pertence. Essa regra é corroborada pelo artigo 78.º, n.º 3 do CPTA.

Da conjugação dos n. º 4 e 5, resulta que a irregularidade na identificação da entidade demandada é automaticamente sanada, eliminando a necessidade de despacho de aperfeiçoamento (art. 87.º, n.º 2 do CPTA) para corrigir tal vício. Contudo, essa dupla sanação só é aplicável quando não há ilegitimidade passiva nos termos definidos pelo n.º 2.

Nos casos em que o órgão citado não é aquele que praticou o ato, cabe a esse órgão comunicar imediatamente a citação ao órgão correto. Este último, por sua vez, dispõe de um prazo suplementar de 15 dias para contestar e enviar o processo administrativo, conforme previsto no artigo 82.º, n.º 2 do CPTA.

 

Pedidos Cumulados e Pluralidade de Demandados (n. º6)

O n.º 6 do artigo 10.º regula situações envolvendo pedidos cumulados. Essa norma estabelece uma pluralidade subjetiva passiva, definindo a legitimidade dos demandados com base nas relações jurídicas subjacentes a cada pedido cumulativo.

A possibilidade de demandar conjuntamente várias pessoas coletivas públicas surge quando os pedidos cumulados são apresentados de forma subsidiária ou alternativa. Nestes casos, não se aplica o princípio da irrelevância jurídica do n.º 4. Assim, se o pedido for dirigido contra a entidade incorreta, configura-se uma situação de ilegitimidade passiva, que deve ser arguida na contestação pela entidade indevidamente citada.

 

Extensão da Legitimidade Passiva em Pedidos Cumulados (n.º 7)

Introduzido pela revisão de 2015, o n.º 7 uniformiza o regime aplicável aos pedidos cumulados sujeitos a diferentes regras de legitimidade passiva, conforme o n.º 2. A solução adotada é a de atribuir legitimidade passiva ao ministério responsável pelo pedido principal, mesmo que os pedidos cumulados envolvam atos praticados por outros órgãos do Estado.

O critério determinante é o objeto do pedido principal. Segundo Mário Aroso de Almeida e Gomes Canotilho, este raciocínio deve ser aplicado, por analogia, às Regiões Autónomas.

No entanto, essa extensão de legitimidade pressupõe que todos os pedidos cumulados sejam dirigidos a uma única pessoa coletiva. Caso contrário, aplica-se o regime previsto no n.º 6.

 

Exceção ao Regime Geral de Legitimidade Passiva (n.º 8)

O n.º 8 constitui uma exceção ao regime do n.º 2, justificando-se quando o litígio envolve órgãos da mesma pessoa coletiva pública, tornando inviável demandar a própria pessoa coletiva.

Essa regra é aplicável, sobretudo, em ações de impugnação de atos administrativos, quando um órgão administrativo busca reagir contra um ato de outro órgão da mesma pessoa coletiva pública para defender o interesse público relacionado às suas competências funcionais.

O preceito possui correspondência no regime de legitimidade ativa previsto nos artigos 55.º, n.º 1, alínea d), e 68.º, n.º 1, alínea d), do CPTA.

 

 

Responsabilidade Solidária e Pluralidade de Demandados (n. º9)

O n.º 9 do artigo 10.º deve ser interpretado em consonância com o artigo 4.º, n.º 2, do ETAF, especialmente em ações de responsabilidade civil que envolvam tanto entidades públicas quanto particulares.

No contexto da responsabilidade civil extracontratual, a solidariedade entre responsáveis está prevista em dois casos específicos: (i) Responsabilidade solidária entre a Administração Pública e servidores públicos: conforme o artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, do RRCEE, esta ocorre quando o ato danoso é praticado por titulares de órgãos ou servidores públicos que tenham atuado com negligência ou zelo manifestamente inferiores aos exigidos pelo cargo; (i) Pluralidade de responsáveis: nos termos do artigo 10.º, n.º 4, do RRCEE, há solidariedade quando o dano resulta de causas imputadas a diferentes pessoas.

Os tribunais administrativos têm competência para julgar ações contra demandados particulares sempre que o litígio esteja inserido em uma relação jurídico-administrativa. O n.º 9 consagra uma regra de legitimação plural, admitindo tanto o litisconsórcio voluntário quanto a pluralidade subjetiva subsidiária, desde que a relação jurídica controvertida envolva simultaneamente entidades públicas e privadas.

De acordo com Rui Medeiros e o Acórdão do STA de 28 de novembro de 1996, não há exigência de litisconsórcio necessário passivo nas situações de responsabilidade solidária entre a Administração e um particular. Contudo, isso não impede que o autor opte por demandar conjuntamente a pessoa coletiva pública e o particular, configurando um litisconsórcio voluntário passivo. O mesmo entendimento é corroborado pelo Acórdão do STA de 19 de fevereiro de 2003 (Proc. n.º 1656/02).

 

Pluralidade Subjetiva Subsidiária e Intervenção de Terceiros (Primeira Parte do n. º10)

O n.º 10 do artigo 10.º do CPTA também trata de situações de pluralidade subjetiva subsidiária, previstas no artigo 39.º do CPC. Esse dispositivo aplica-se quando o autor tem uma dúvida razoável e fundada sobre a titularidade da relação material controvertida, permitindo-lhe deduzir o mesmo pedido de forma subsidiária ou apresentar um pedido subsidiário contra réus distintos.

A primeira parte do n.º 10 admite a aplicação subsidiária de qualquer das formas de intervenção de terceiros previstas nos artigos 320.º e seguintes do CPC. Em conjugação com o n.º 9, permite que o incidente de intervenção de terceiros seja utilizado em relação a particulares que devam intervir como demandados, desde que atendam aos requisitos de legitimidade.

Um exemplo é a intervenção principal, em que o terceiro faz valer um direito próprio, paralelo ao do réu, que poderia ter configurado um litisconsórcio inicial (voluntário ou necessário). Essa intervenção gera um litisconsórcio sucessivo, sujeito aos mesmos requisitos do litisconsórcio original. Nesse sentido, destaca-se o Acórdão do TCA Sul de 7 de abril de 2011 (Proc. n.º 2798/07).

Face à remissão genérica para a lei processual civil em matéria de intervenção de terceiros, prevista no n.º 10, não se exclui a intervenção acessória (art. 321.º do CPC), aplicável quando o réu possui direito de regresso contra um terceiro.

 

Intervenção Provocada (Segunda Parte do n.º 10)

A segunda parte do n.º 10 prevê um caso específico de intervenção provocada. Essa ocorre quando a satisfação das pretensões deduzidas contra a Administração Pública exige a colaboração de outras entidades, além daquela contra a qual o pedido principal é dirigido.

 

Conclusão 

O artigo 10.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos é um pilar fundamental na estrutura do contencioso administrativo, ao estabelecer o regime da legitimidade passiva nos litígios que envolvem a Administração Pública e outras entidades. Ao combinar critérios gerais com disposições específicas e exceções, o artigo aborda a complexidade das relações jurídico-administrativas, oferecendo um enquadramento claro e detalhado para identificar os demandados adequados em cada situação.

Além de regular litisconsórcios e intervenções de terceiros, o artigo 10.º reflete a preocupação em harmonizar as normas administrativas com os princípios do processo civil, garantindo uma solução justa e eficaz para os conflitos. Este regime contribui para a efetivação do direito à tutela jurisdicional, promovendo a legalidade e a responsabilização das entidades públicas e privadas no âmbito do contencioso administrativo.

 

Bibliografia 

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4ª edição, 2017

 

VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2.ª edição, 2013

 

Trabalho realizado por:

Rita Eusébio, aluna n.º 67643, subturma 6 

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