Monday, December 9, 2024

Julgar e administrar- o trauma do Contencioso Administrativo

Os eventos históricos que marcaram o surgimento e a evolução do Direito Administrativo permitem compreender muitos dos desafios que enfrenta na atualidade. Um dos grandes eventos que marcou a evolução histórica do contencioso administrativo, foi a confusão entre julgar e administrar.

John Locke identifica três poderes distintos: o legislativo, o executivo e o federativo, sendo que “o poder federativo contém o poder de guerra e paz, de constituir ligas e alianças (…)[1]. Acrescenta que o poder legislativo e executivo, não devem estar separados, uma vez que “ambos requerem para o seu exercício a força da sociedade, e é quase impraticável colocar a força da comunidade política em mãos distintas e não subordinadas”. [2]

Tal como aponta o Professor Vasco Pereira da Silva, a “infância” do contencioso administrativo foi marcada por “duas principais experiências traumáticas”[3]: o primeiro grande acontecimento está marcado pela Revolução Francesa, pela defesa dos poderes públicos e pelo princípio da separação de poderes. Relativamente à separação de poderes, uma vez que era atribuído aos órgãos da administração a tarefa de se julgarem a si próprios, criou-se uma confusão entre a função de administrar e a de julgar. A revolução francesa pretendia que os tribunais deixassem de controlar a própria administração, deixando que esta tivesse o seu controlo total. Isto resulta numa fusão entre a administração e a justiça, o que vai contra o princípio da separação de poderes. Em vez de uma divisão, estabeleceu-se uma relação próxima entre os dois. E assim, foi elaborado o Direito Administrativo, do qual permite perceber os problemas que atualmente defronta. O segundo trauma fica marcado pela necessidade de os tribunais controlarem a administração, quando está em causa o agir da mesma em desconformidade com o direito, necessitando de ser responsabilizada - negação dos direitos dos particulares.

Uma coisa é certa, “a justiça administrativa nasceu dentro da administração .”[4] No século XVII, era clara a proibição da intervenção dos tribunais judiciais na esfera da Administração, sendo uma representação clara do princípio da separação de poderes. Todavia, foi criado um sistema em que as funções de julgar e administrar estavam unidas dentro da própria administração- “um sistema em que o administrador era o juiz e o juiz era o administrador”.[5] Por conseguinte, estamos presentes do enfraquecimento da imparcialidade desejada e da dificuldade de supervisão independente dos atos administrativos.

Tal como o Professor Vasco Pereira da Silva reforça, é necessário olhar para factos anteriores para entendermos melhor a “infância” do Contencioso Administrativo e são por si apontados quatro motivos históricos que fundamentam a existência da sua confusão[6].

O primeiro motivo relaciona-se com a conceção de Estado e a separação de poderes, sendo que uma das grandes procuras da Revolução Francesa é o estabelecimento de um novo modelo de estado, isto porque a separação de poderes era vista como um elemento essencial. Existe uma procura de um “Estado todo-poderoso”[7], em oposição à ideia inglesa. Por sua vez, o segundo motivo ficou marcado pela revolta dos franceses contra a atuação dos tribunais e pelos instrumentos de controlo das decisões administrativas. Em terceiro lugar, temos a proibição dos tribunais comuns julgarem litígios administrativos, evitando que a Administração fosse controlada pelas autoridades judiciárias. Assim, seria necessário que se criasse órgãos administrativos especiais.  Por último, verifica-se a utilização de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da administração, tais como os vícios do ato.

Como mencionado anteriormente, no primeiro motivo, há uma clara distinção entre o sistema francês e o sistema inglês, sendo necessário recorrer ao Direito Comparado para observar as grandes diferenças entre estes dois sistemas.

No caso do sistema inglês, o Rei não poderia interferir em questões de natureza contenciosa e a Administração Pública encontrava-se submetida ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns. O Professor Freitas do Amaral reforça que “nenhuma autoridade pode invocar privilégios ou imunidades visto haver uma só medida de direitos para todos, uma só lei para funcionários e não funcionários, um só sistema para o Estado e para os particulares”[8]. Aqui é claro que a Administração “administra” e os tribunais “julgam”.  Já no caso do sistema francês, a Administração está sujeita à fiscalização dos tribunais administrativos, existindo a confusão entre julgar e administrar.

O debate sobre a separação entre os poderes de administrar e julgar é crucial para compreender o funcionamento do Estado moderno, especialmente no contexto do contencioso administrativo. Recuando ao segundo trauma do Contencioso Administrativo abordado anteriormente, o caso de Agnés Blanco, ilustrado pelo Professor Vasco Pereira da Silva no seu livro, onde é representado a autonomia do Direito Administrativo ao mesmo tempo que se pretende limitar a responsabilidade da Administração.

Tal como é defendido por Locke, os poderes executivo e federativo “não podem ser separados uma vez que ambos requerem para o seu exercício a força da sociedade, e é quase impraticável colocar a força da comunidade política em mãos distintas e não subordinadas, ou que o poder executivo e o poder federativo sejam entregues a pessoas que podem atuar separadamente, o que levaria a que a força do público estivesse sujeita a comandos diferentes, algo que, mais tarde ou mais cedo, tenderia a causar desordem e a ruína”[9].  

Historicamente, a junção dos poderes de julgar e administrar na Administração era exemplificada como um contexto que criava um sentimento de incerteza jurídica para os cidadãos. No caso de Agnés Blanco, ficou retratado que era necessário criar um direito especial para a administração a fim de delimitar a função administrativa e judicial de forma mais clara e permitir proteger os cidadãos contra os abusos estatais.

O nascimento do contencioso administrativo teve como um dos seus principais objetivos a proteção dos direitos dos particulares face à Administração. Se a Administração, por sua vez, mantivesse a função de se auto julgar, colocaria em risco a imparcialidade e a equidade na aplicação da justiça. Assim, a criação do contencioso administrativo permitiu consagrar a teoria da separação de poderes - uma garantia para o cidadão e para o próprio Estado que permitiu a transparência e maior confiança nas instituições públicas.

Para concluir, afastar o poder de administrar e julgar resguarda os princípios de um Estado de Direito, onde a Administração age dentro dos seus limites legais, com o controlo necessário, originando a construção de uma democracia mais sólida, na qual a justiça não é um instrumento do poder administrativo, mas sim uma ferramenta de proteção dos direitos individuais.

 

Bibliografia adicional

ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 7,ª edição, Coimbra, 2023, Almedina

ANDRADE, José, “A Justiça Administrativa”, 19.ª edição, Coimbra, 2022, Almedina


[1] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 159

[2] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 160

[3] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina, página 10

[4] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina, página 13

[5] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina, página 14

[6] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina, páginas 16 a 25

[7] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina, página 16

[8] FREITAS DO AMARAL, DIOGO, “Curso de Direito Administrativo”, Voluma 1, 3º Edição, Lisboa, Almedina, páginas 104 e 105

[9] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 160


Trabalho realizado por

  • Carolina Figueiredo, nº de aluno 64326, 4º ano, Turma A, Subturma 6 

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