Os eventos históricos que marcaram o surgimento e a evolução do Direito Administrativo permitem compreender muitos dos desafios que enfrenta na atualidade. Um dos grandes eventos que marcou a evolução histórica do contencioso administrativo, foi a confusão entre julgar e administrar.
John Locke identifica três poderes distintos: o legislativo,
o executivo e o federativo, sendo que “o poder federativo contém o poder de
guerra e paz, de constituir ligas e alianças (…)[1]. Acrescenta que o poder legislativo e executivo, não
devem estar separados, uma vez que “ambos requerem para o seu exercício a força
da sociedade, e é quase impraticável colocar a força da comunidade política em
mãos distintas e não subordinadas”. [2]
Tal como aponta o Professor Vasco Pereira da Silva, a
“infância” do contencioso administrativo foi marcada por “duas principais
experiências traumáticas”[3]: o primeiro grande acontecimento está marcado pela
Revolução Francesa, pela defesa dos poderes públicos e pelo princípio da
separação de poderes. Relativamente à separação de poderes, uma vez que era
atribuído aos órgãos da administração a tarefa de se julgarem a si próprios,
criou-se uma confusão entre a função de administrar e a de julgar. A revolução
francesa pretendia que os tribunais deixassem de controlar a própria
administração, deixando que esta tivesse o seu controlo total. Isto resulta
numa fusão entre a administração e a justiça, o que vai contra o princípio da
separação de poderes. Em vez de uma divisão, estabeleceu-se uma relação próxima
entre os dois. E assim, foi elaborado o Direito Administrativo, do qual permite
perceber os problemas que atualmente defronta. O segundo trauma fica marcado
pela necessidade de os tribunais controlarem a administração, quando está em
causa o agir da mesma em desconformidade com o direito, necessitando de ser
responsabilizada - negação dos direitos dos particulares.
Uma coisa é certa, “a justiça administrativa nasceu dentro da
administração .”[4] No século XVII, era clara a proibição da intervenção
dos tribunais judiciais na esfera da Administração, sendo uma representação
clara do princípio da separação de poderes. Todavia, foi criado um sistema em
que as funções de julgar e administrar estavam unidas dentro da própria
administração- “um sistema em que o administrador era o juiz e o juiz era o
administrador”.[5] Por conseguinte, estamos presentes do enfraquecimento
da imparcialidade desejada e da dificuldade de supervisão independente dos atos
administrativos.
Tal como o Professor Vasco Pereira da Silva reforça, é
necessário olhar para factos anteriores para entendermos melhor a “infância” do
Contencioso Administrativo e são por si apontados quatro motivos históricos que
fundamentam a existência da sua confusão[6].
O primeiro motivo relaciona-se com a conceção de Estado e a
separação de poderes, sendo que uma das grandes procuras da Revolução Francesa
é o estabelecimento de um novo modelo de estado, isto porque a separação de
poderes era vista como um elemento essencial. Existe uma procura de um “Estado
todo-poderoso”[7], em oposição à ideia inglesa. Por sua vez, o segundo
motivo ficou marcado pela revolta dos franceses contra a atuação dos tribunais
e pelos instrumentos de controlo das decisões administrativas. Em terceiro
lugar, temos a proibição dos tribunais comuns julgarem litígios
administrativos, evitando que a Administração fosse controlada pelas
autoridades judiciárias. Assim, seria necessário que se criasse órgãos
administrativos especiais. Por último, verifica-se a utilização de
técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da administração, tais como os
vícios do ato.
Como mencionado anteriormente, no primeiro motivo, há uma
clara distinção entre o sistema francês e o sistema inglês, sendo necessário
recorrer ao Direito Comparado para observar as grandes diferenças entre estes
dois sistemas.
No caso do sistema inglês, o Rei não poderia interferir em
questões de natureza contenciosa e a Administração Pública encontrava-se
submetida ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns. O Professor Freitas
do Amaral reforça que “nenhuma autoridade pode invocar privilégios ou
imunidades visto haver uma só medida de direitos para todos, uma só lei para
funcionários e não funcionários, um só sistema para o Estado e para os
particulares”[8]. Aqui é claro que a Administração “administra” e os
tribunais “julgam”. Já no caso do sistema francês, a Administração está
sujeita à fiscalização dos tribunais administrativos, existindo a confusão
entre julgar e administrar.
O debate sobre a separação entre os poderes de administrar e
julgar é crucial para compreender o funcionamento do Estado moderno,
especialmente no contexto do contencioso administrativo. Recuando ao segundo
trauma do Contencioso Administrativo abordado anteriormente, o caso de Agnés
Blanco, ilustrado pelo Professor Vasco Pereira da Silva no seu livro, onde é
representado a autonomia do Direito Administrativo ao mesmo tempo que se
pretende limitar a responsabilidade da Administração.
Tal como é defendido por Locke, os poderes executivo e
federativo “não podem ser separados uma vez que ambos requerem para o seu
exercício a força da sociedade, e é quase impraticável colocar a força da
comunidade política em mãos distintas e não subordinadas, ou que o poder
executivo e o poder federativo sejam entregues a pessoas que podem atuar
separadamente, o que levaria a que a força do público estivesse sujeita a
comandos diferentes, algo que, mais tarde ou mais cedo, tenderia a causar
desordem e a ruína”[9].
Historicamente, a junção dos poderes de julgar e administrar
na Administração era exemplificada como um contexto que criava um sentimento de
incerteza jurídica para os cidadãos. No caso de Agnés Blanco, ficou retratado
que era necessário criar um direito especial para a administração a fim de
delimitar a função administrativa e judicial de forma mais clara e permitir
proteger os cidadãos contra os abusos estatais.
O nascimento do contencioso administrativo teve como um dos
seus principais objetivos a proteção dos direitos dos particulares face à
Administração. Se a Administração, por sua vez, mantivesse a função de se auto
julgar, colocaria em risco a imparcialidade e a equidade na aplicação da
justiça. Assim, a criação do contencioso administrativo permitiu consagrar a
teoria da separação de poderes - uma garantia para o cidadão e para o próprio
Estado que permitiu a transparência e maior confiança nas instituições públicas.
Para concluir, afastar o poder de administrar e julgar resguarda os princípios de um Estado de Direito, onde a Administração age dentro dos seus limites legais, com o controlo necessário, originando a construção de uma democracia mais sólida, na qual a justiça não é um instrumento do poder administrativo, mas sim uma ferramenta de proteção dos direitos individuais.
Bibliografia adicional
ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 7,ª
edição, Coimbra, 2023, Almedina
ANDRADE, José, “A Justiça Administrativa”, 19.ª edição,
Coimbra, 2022, Almedina
[1] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das
Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 159
[2] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das
Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 160
[3] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina,
página 10
[4] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina,
página 13
[5] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina,
página 14
[6] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina,
páginas 16 a 25
[7] PEREIRA DA SILVA, VASCO, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª edição, Coimbra, 2013, Almedina,
página 16
[8] FREITAS DO AMARAL, DIOGO, “Curso de Direito
Administrativo”, Voluma 1, 3º Edição, Lisboa, Almedina, páginas 104 e 105
[9] DE AREDE NUNES, FILIPE “Introdução à História das
Ideias Políticas”, Lisboa, 2021, AAFDL Editora, página 160
Trabalho realizado por
- Carolina Figueiredo, nº de aluno 64326, 4º ano, Turma A, Subturma 6
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