A impugnação de normas regulamentares imediatamente operativas com fundamento em direitos fundamentais
Pedro Carneiro, n.º 66482
1. O Problema
A norma regulamentar poderá assumir as mesmas tipologias de inconstitucionalidade conhecidas para as normas legais[1] – orgânica, formal e material. O presente estudo, porém, irá debruçar-se apenas sobre esta última, onde o conteúdo normativo da norma regulamentar conflitua com o de dada norma constitucional.[2] Mais concretamente, focar-nos-emos nos casos em que uma norma regulamentar imediatamente operativa estabelece uma restrição inadmissível a um direito fundamental.
Perante tais casos, terá não só o ordenamento de prever mecanismos de controlo da constitucionalidade da norma regulamentar, expurgando-a se adequado, como de defesa dos eventuais titulares do direito fundamental afetado. E, em boa verdade, é esse o caso no nosso ordenamento, pertencendo a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral ao Tribunal Constitucional (cf. artigo 281.º, n.º 1, a) da Constituição) e a proteção do direito fundamental afetado pela norma à jurisdição administrativa (cf. artigo 4.º, n.º 1, a) do ETAF e, além dos processos urgentes, artigos 72.º e seguintes do CPTA).
Todavia, a rígida repartição entre jurisdições operada, em primeira instância, pela própria Constituição, resulta numa deficiente proteção do direito fundamental afetado por uma norma regulamentar imediatamente operativa. Devido à competência exclusiva para aferir a inconstitucionalidade de qualquer norma concedida à jurisdição constitucional, os tribunais administrativos estão limitados, perante uma restrição ilegítima de um direito fundamental, a declarar a ilegalidade da norma regulamentar com efeitos circunscritos ao caso, nos termos do artigo 73.º, n.º 2 do CPTA.[3]
Ou seja, a fiscalização difusa da constitucionalidade operada pelos tribunais administrativos apenas irá aproveitar a quem for parte na causa, apesar de – sendo a norma regulamentar imediatamente operativa – todos os destinatários da norma verem o seu direito fundamental em causa restringido.
2. O Regime Atual e o seu Paradoxo
A conjugação dos artigos 72.º, n.º 2 e 73.º, n.º2, do CPTA, determina que o titular de um direito fundamental, restringido de forma inadmissível por uma norma regulamentar imediatamente operativa, apenas poderá obter uma declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso. Note-se, antes de mais, que é este o limiar garantístico mínimo a que o legislador ordinário está obrigado: o artigo 268.º, n.º 5 da Constituição, ao estabelecer um direito fundamental de impugnação de normas administrativas,[4] impõe ao legislador a criação de um mecanismo impugnatório para a proteção de direitos subjetivos, inclusive os decorrentes das normas de direitos fundamentais.[5]
No entanto, a declaração de ilegalidade com efeitos restritos ao caso concreto levanta problemas, tanto no plano lógico como no plano normativo. Como escreve Vasco Pereira da Silva:[6]
“A categoria de «normas hamletianas», divididas entre o “ser ilegal” para aquele caso concreto e o (poder) “não ser ilegal” para os demais casos, não apenas é incompatível com o princípio da legalidade, como com outros princípios fundamentais, nomeadamente os princípios da unidade e da coerência do sistema jurídico, os princípios da certeza e da segurança que constituem pilares fundamentais do Estado de Direito, ou até mesmo com o princípio da igualdade (pois, a declaração concreta de ilegalidade equivale à criação de um estatuto especial de desigualdade, num domínio em que, por definição, deveria existir sempre igualdade, que é o da aplicação da lei)”.[7]
De facto, os argumentos avançados pelo Autor ganham ainda mais relevância quando deslocados para o plano dos direitos fundamentais. A declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso de norma regulamentar imediatamente operativa e restritiva de direitos fundamentais irá conduzir ao pleno e legítimo aproveitamento do direito fundamental em risco pelo autor da causa, mas apenas pelo autor da causa. Todos os demais – apesar da declarada inconstitucionalidade da norma – verão ainda o seu direito fundamental restringido pelo regulamento imediatamente operativo, a não ser, claro está, que avancem eles próprios com ações idênticas às do autor original. Esta solução não só parece atentatória da economia processual, como da segurança e certeza jurídica.[8]
Ademais, a declaração de ilegalidade com efeitos no caso concreto de uma norma que, por natureza, é geral e abstrata, levanta outras questões: como se poderá proceder a essa circunscrição dos efeitos da sentença se o pedido de impugnação da norma regulamentar for proposta por um autor popular na defesa de direitos fundamentais e, portanto, sem interesse direto na demanda?[9] A hipótese assemelha-se de tal forma ilógica que o legislador se viu forçado a excluir o autor popular da legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade nos termos do artigo 73.º, n.º 2.[10]
E, no entanto, os casos onde seria útil conceder legitimidade ao autor popular para impugnar normas regulamentares seriam precisamente aqueles onde a violação de direitos fundamentais estivesse em causa,[11] dada a especial gravidade da questão e a própria raison d’être da figura da ação popular no artigo 52.º, n.º 3 da Constituição. E, na verdade, essa legitimidade seria até possível ao abrigo do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, não fosse, como escreve ANA GONÇALVES MONIZ, o facto de “as sentenças transitadas em julgado proferidas no âmbito de processo que tenham por objeto a defesa de interesses individuais homogéneos abrangerem (todos) os titulares dos direitos ou interesses que não se tenham autoexcluído – o que não se compatibiliza com os efeitos circunscritos ao caso pressupostos pelo artigo 73.º, n,º 2”.[12] Por outras palavras, o aproveitamento da declaração de inconstitucionalidade da norma regulamentar, por todos os titulares em igualdade de circunstâncias do direito fundamental atacado, é incompatível com o regime vigente.
Todavia, o principal paradoxo ínsito no presente regime é que tudo isto só é válido para os casos em que a norma regulamentar contenda com direitos de dignidade constitucional. Em todos os restantes casos, onde o interessado invoque a violação de um qualquer direito subjetivo decorrente da lei ordinária, será possível a obtenção de uma declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e todos os demais titulares do mesmo direito poderão aproveitar do juízo de ilegalidade do tribunal. Trata-se, na impugnação de normas administrativas imediatamente operativas, de atribuir uma menor proteção aos direitos fundamentais face a todos os demais.
3. O recurso aos princípios gerais da atividade administrativa
De iure condendo, uma solução seria um modelo similar ao do contencioso administrativo alemão nesta matéria. Aí, e apesar das restrições a outros níveis, é pacífico que o direito constitucional federal deve ser um dos parâmetros de controlo da validade de regulamentos.[13] E, de acordo com a secção 47, n.º 5, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos Alemães,[14] a decisão do Supremo Tribunal Administrativo que conclua pela inconstitucionalidade da norma regulamentar terá efeitos erga omnes.
De iure constituto, porém, a decisão do legislador constitucional de atribuir a competência exclusiva em matéria de expurgo de quaisquer normas à jurisdição constitucional é incontornável.
Igualmente incontornável é também a impossibilidade dos próprios particulares desencadearem qualquer fiscalização nessa sede: a violação de direitos fundamentais não concede a um cidadão legitimidade para pedir a fiscalização abstrata da constitucionalidade. A legitimidade para requerer a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não pressupõe qualquer interesse pessoal, mas sim a titularidade de determinados cargos vocacionados para a defesa e garantia do princípio da constitucionalidade e da legalidade democrática.[15]
Dito isto, uma hipótese enquadrável no nosso ordenamento será a de permitir a impugnação da norma regulamentar por violação dos princípios gerais da atividade administrativa, nomeadamente os princípios da igualdade e da proporcionalidade, recorrendo às normas de direitos fundamentais apenas enquanto substrato normativo dos direitos subjetivos lesados. De facto, uma coisa será a posição jurídica atribuída e outra será a norma de direito fundamental que a confere.[16] Importará, por isso, compreender quais as normas de direitos fundamentais configuradoras de “direitos subjetivos absolutos e autónomos suscetíveis de poderem valer como alicerce jurídico necessário e suficiente à demanda de posições jurídicas individuais”.[17] Nesses casos, a posição jurídica de vantagem (o direito subjetivo) será normativamente fundada na norma constitucional, mas autónoma daquela, assumindo-se estruturalmente idêntica a qualquer outro direito subjetivo de origem normativa inferior.[18]
E, tal como o artigo 268.º, n.º 5 da Constituição, no entendimento de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA,[19] não pretende discriminar entre a origem normativa das posições jurídicas a tutelar, também o artigo 7.º, n.º 2 do CPA deverá ser entendido como incluindo na sua previsão todos os direitos subjetivos conferidos ao particular, incluindo os decorrentes das normas de direitos fundamentais. Deste modo, será possível ao particular recorrer ao mecanismo do artigo 73.º, n.º 1 do CPTA, ao fundamentar o seu pedido, não na norma constitucional, mas sim na violação de uma norma legal cuja previsão é, in casu, preenchida por uma posição jurídica extraída da norma de direito fundamental. Assim, o juízo do tribunal administrativo incidirá sobre a violação do princípio geral, consagrado em norma legal, não contendendo com a reserva da jurisdição constitucional explanada no artigo 281.º da Constituição.
Todavia, o Supremo Tribunal Administrativo, assim como alguma doutrina,[20] veio pronunciar-se contra esta possibilidade, primeiro a 18/08/2004[21] e depois a 18/11/2010.[22] Em ambas as decisões, o STA entendeu não poder o princípio da proporcionalidade, assim como os demais princípios gerais da atividade administrativa, ser “verdadeiro parâmetro de aferição da legalidade dos regulamentos, mas, tão só, critérios ordenadores do modo como a atividade regulamentar haverá de ser exercida caso a lei habilitante conceda ao autor do regulamento um espaço de liberdade na concretização de comandos legais relativamente indeterminados”. E ainda que “ a ilegalidade dos regulamentos consiste sempre na infidelidade deles relativamente à sua fonte legal imediata – e os artigos 3º e seguintes do CPA não cumprem essa função fontal.”
Em sentido contrário, por outro lado, parece advogar FREITAS DO AMARAL que, de entre os limites ao poder regulamentar, enumera os princípios gerais do Direito Administrativo, escrevendo:
“Estes princípios podem ser revogados por normas legais, pois têm a mesma posição hierárquica delas, mas não podem ser derrogados diretamente pelos regulamentos. «A não observância desta vinculação – di-lo [Afonso] Queiró – importa ‘violação de lei’ e consequente anulabilidade ou não aplicação dos regulamentos»”.[23]
E, de facto, parece-nos limitativo reconduzir toda e qualquer ilegalidade de determinado regulamento à lei habilitante. Aliás, tal poderá até ser entendido como contrário ao direito-garantia disposto no artigo 268.º, n.º 5 da Constituição, de acordo com o qual a lesão de qualquer direito subjetivo, ainda que sem origem na lei habilitante, servirá de fundamento para a impugnação de regulamento com eficácia externa. De igual modo, nenhuma limitação nesse sentido advém dos artigos 72.º e 73.º, n.º 1 do CPTA.
4. Conclusão
Este breve trabalho procurou, sobretudo, destacar a solução algo paradoxal adotada pelo nosso regime quanto à impugnação de regulamentos imediatamente operativos, onde um particular, terceiro à causa, apenas poderá aproveitar da declaração de ilegalidade (com força obrigatória geral) de norma regulamentar com fundamento em violação de lei, mas não já quando a declaração de ilegalidade assentar num direito fundamental.
A partir daí, procurou-se construir uma solução que permitisse contornar o problema – assegurado o respeito pela reserva jurisdicional do Tribunal Constitucional –possibilitando a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, pelo menos, quando estejam em causa direitos subjetivos decorrentes de normas de direitos fundamentais.
Pedro Carneiro
Bibliografia:
FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 4ª edição
GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição, 2007
JORGE SILVA SAMPAIO, Ponderação e Proporcionalidade, vol. I, Almedina, 2023
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4ª edição, 2017
PEDRO DELGADO ALVES, O Novo Regime de Impugnação de Normas, Novas e Velhas andanças do Contencioso Administrativo – Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, coord. Vasco Pereira da Silva, Almedina, 2005
PEDRO MONIZ LOPES, Apontamentos sobre a apreciação da inconstitucionalidade de regulamentos pelos tribunais, 40 anos do Centro de Estudos Judiciários, 2020
RAQUEL GONÇALVES MONIZ, O Controlo Judicial do Exercício do Poder Regulamentar co Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Impugnação Direta e Indireta de Regulamentos e Omissões Regulamentares), 40 anos do Centro de Estudos Judiciários, 2020
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2.ª edição, 2013
VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 19ª edição, 2021
[1] Nomeadamente, inconstitucionalidades orgânicas, formais ou materiais, cada uma geradora de um vício distinto. Cf. PEDRO MONIZ LOPES, Apontamentos sobre a apreciação da inconstitucionalidade de regulamentos pelos tribunais, 40 anos do Centro de Estudos Judiciários, 2020, p.32
[2] Ibidem, p.33
[3] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 19ª edição, 2021, p.216; AROSO DE ALMEIDA/CAROLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 4.ª edição, 2017, p.516; há ainda quem defenda uma interpretação restritiva tanto do artigo 72.º, n.º 2 e artigo 73.º, n.º 2 como incluindo apenas os fundamentos de “ilegalidade” strictu sensu enumerados no artigo 280.º, n.º 1 da Constituição, excluindo assim totalmente da jurisdição administrativa os casos de inconstitucionalidade de normas regulamentares. Todavia, parece claro, como explicam VIEIRA DE ANDRADE e AROSO DE ALMEIDA, que tal interpretação não será compatível com o artigo 268.º, n.º 5 da Constituição.
[4] VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p.208-209
[5] Relativamente à inclusão dos direitos fundamentais na expressão “direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos”, cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra editora, 3ª edição, p.832
[6] Atente-se que o Autor escrevia no contexto e relativamente ao anterior regime do CPTA, onde a declaração de ilegalidade com efeitos restritos ao caso era o único efeito possível de ser desencadeado pelos particulares em ação impugnatória. A argumentação, porém, é igualmente pertinente quanto à presente questão.
[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2.ª edição, 2013, p.422
[8] No mesmo sentido, ainda que relativamente ao anterior regime e, portanto, advogando a possibilidade de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral com fundamento em ilegalidade, hoje possível, cf. VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p.208
[9] VASCO PEREIRA DA SILVA, ob. cit., p.423
[10] RAQUEL GONÇALVES MONIZ, O Controlo Judicial do Exercício do Poder Regulamentar co Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Impugnação Direta e Indireta de Regulamentos e Omissões Regulamentares), 40 anos do Centro de Estudos Judiciários, 2020, nota de rodapé n.º 41; o preceito citado atribui legitimidade apenas a “quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo”.
[11] Ibidem
[12] Ibidem
[13] PEDRO DELGADO ALVES, O Novo Regime de Impugnação de Normas, Novas e Velhas andanças do Contencioso Administrativo – Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo, Almedina, 2005, p.52
[14] Disponível em inglês em https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_vwgo/englisch_vwgo.pdf
[15] GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p.967
[16] JORGE SILVA SAMPAIO, Ponderação e Proporcionalidade, vol. I, Almedina, 2023, p.486
[17] GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p.382
[18] Não fica, por isso, aberto o caminho para a total “constitucionalização” do juízo de legalidade pelo juiz administrativo, uma vez que apenas aquelas normas de direitos fundamentais que, pelo seu grau de determinabilidade, conferem direitos subjetivos poderão ser invocadas pelo particular como fundamento à impugnação da norma regulamentar. Só assim poderá ser, visto que o artigo 268.º, n.º 5 consagra “uma dimensão subjetiva fundamental no recurso: o direito ao recurso é um meio de defesa de posições jurídicas subjetivas” (cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p.832).
[19] Ibidem, p.832
[20] Apoiando-se na jurisprudência do STA, AROSO DE ALMEIRA/CARLOS CADILHA, ob. cit., p.515
[21]https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f062c53ee7dd16ad80256f16005159e0?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1
[22]https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1229a3e050ef57e7802577f500501faa?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1
[23] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 4ª edição, p.170
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