Friday, November 22, 2024

A intervenção do Ministério Público no Contencioso Administrativo - Sofia Ferreira


A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

Sofia Figueiredo Ferreira[1]*

SUMÁRIO: 1. O papel do Ministério Público enquadrado no Contencioso Administrativo. 2. Os parâmetros de atuação do Ministério Público na defesa da legalidade. 2.1. O exercício da ação pública. 2.2. A intervenção em juízo como auxiliar do tribunal. 3. A representação do Estado. 4. Considerações finais.

                                                                                                                     

1.        1. O papel do Ministério Público enquadrado no Contencioso Administrativo

Uma análise sobre as competências do Ministério Público no nosso ordenamento jurídico e, eventualmente de forma mais concreta no Contencioso Administrativo português, não poderia deixar de partir da disposição do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa. Este preceito constitucional estabelece as atribuições do Ministério Público que, naturalmente, têm reflexo no Contencioso Administrativo.  Logo no início do n.º 1 do artigo, surge a menção à primeira função: a representativa. Para Paulo Dias Neves, esta função prende-se com o modo concreto como o próprio Estado, em cada momento e contexto, perspetiva a melhor forma de prosseguir o interesse público no respeito pela legalidade e pelos direitos e interesses legalmente protegidos pelos particulares.[2] A outra grande função enunciada é a da defesa da legalidade democrática que, por sua vez, é explicada por este Autor como o critério orientador das demais atribuições do Ministério Público, num sentido amplo que inclui, para além da tutela da legalidade objetiva, também a defesa dos vários interesses difusos e outros que a lei lhe confere.[3]

Pelo que foi enunciado, Paulo Dias Neves adota o entendimento dos Professores Figueiredo Dias e Vieira de Andrade quanto à natureza do Ministério Público, considerando-o uma instituição administrativa que colabora com o poder judicial, mas que não se confunde com ele.[4] O caráter materialmente administrativo, e não jurisdicional, da sua atividade está sobretudo patente na deteção da ilegalidade administrativa e na propositura e condução da ação pública, que analisaremos de forma mais concreta a breve trecho.

Mas o interesse no tratamento desta matéria do papel do Ministério Público na nossa ordem jurídica reside na importância de precisar, tanto mais por se tratar de um poder público, o seu âmbito de atuação, o que ao longo dos anos se tem revelado complexo e controverso. Com base numa análise de outros ordenamentos jurídicos, Sérvulo Correia chega à conclusão que estes se situam entre dois polos: o de uma intervenção imparcial para a promoção da solução conforme com a legalidade e o do patrocínio judiciário público da Administração estadual, normalmente também acompanhado de consulta jurídica.[5] O modelo português, por sua vez, apresenta uma maior complexidade, encerrando um leque variado de atuações: ora o Ministério Público intervém no Contencioso Administrativo em defesa imparcial da legalidade, ora assume a veste de patrono forense da Administração em juízo.[6]

Se se pudesse pensar que as várias reformas no Contencioso Administrativo haviam trazido mais clareza a este assunto, essa parece não ser a opinião da generalidade dos Autores. Paulo Dias Neves sublinha que a Revisão de 2015 ao CPTA, operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 2 de outubro, não trouxe alterações significativas ao papel e atuação do Ministério Público no Contencioso Administrativo, sendo consensual que se tratou de uma oportunidade desperdiçada para “aligeirar” a missão obsoleta de representação do Estado, a que depois daremos mais enfoque nesta exposição. Por outro lado, assinala também que se poderiam ter definido melhor os parâmetros legais de atuação do Ministério Público na sua tarefa de defesa da legalidade democrática no plano do Contencioso Administrativo.[7] Em 2001, Sérvulo Correia já falava também da necessidade de determinar com maior clareza as finalidades da participação do Ministério Público e que estas apresentassem uma coerência no seio do modelo português.[8]

2.          2. Os parâmetros de atuação do Ministério Público na defesa da legalidade

Numa aceção ampla, a função de defesa da legalidade por parte do Ministério Público é retirada de dois (dos três) enunciados aplicáveis à jurisdição administrativa contidos no já indicado artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa: “defender os interesses que a lei determinar” e “defender a legalidade democrática”. Para Sérvulo Correia, nenhum deles se mostra totalmente claro quanto à natureza dos interesses a prosseguir, uma vez que, no primeiro, remete-se apenas para a identificação pelo legislador ordinário e, do segundo, pode dizer-se que a defesa da legalidade democrática constitui em si um interesse público primordial.[9] Mas, para Paulo Dias Neves, é natural que a norma constitucional não densifique o suficiente, tendo em conta que as atribuições, competências e títulos do Ministério Público encontram-se dispersos por outros diplomas variados, como o Estatuto do Ministério Público, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e demais legislação avulsa.[10]

A defesa da legalidade democrática a que se refere a Constituição é reeditada e referida novamente no artigo 51.º do ETAF – “defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere” – e no artigo 3.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto) – “defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do respetivo estatuto e da lei”. O Estatuto do Ministério Público, por sua vez, reafirma o que é dito na Constituição, mas com ligeiras alterações – “defende os interesses que a lei determinar e defende a igualdade democrática nos termos da Constituição, do presente estatuto, e da lei.” – artigo 2.º do EMP. No artigo 4.º do EMP enumeram-se algumas das competências do Ministério Público, embora não exista nenhuma referência expressa à defesa da legalidade administrativa, à fiscalização e impugnação de atos, normas regulamentares ou contratos no Contencioso Administrativo, cabendo tudo isto nas referidas “demais funções conferidas por lei” mencionadas na alínea r, do n.º 1 do mesmo artigo. Quanto ao diploma do CPTA, este, por sua vez, faz referência a várias situações em que o Ministério Público está investido de “legitimidade”.  A este propósito, Paulo Dias Neves relembra que esta não deve ser entendida como uma verdadeira legitimidade no sentido próprio do termo, pois o que está efetivamente em causa é a suscetibilidade de o Ministério Público exercer as suas competências legais em juízo.[11] Para lá chegar, pressupõe-se o apuramento da “verdadeira” legitimidade num momento anterior.

A observação do disposto em todos estes diplomas leva Paulo Dias Neves a concluir pela sua insuficiência quanto à concretização das competências do Ministério Público aquando da defesa da legalidade no Contencioso Administrativo (no EMP ou em legislação avulsa). Além disso, propõe a criação de uma disciplina de apuramento da sua legitimidade, em sede de disposições gerais.[12]

Tendo em consideração o âmbito exclusivo de aplicação do CPTA, estas são as formas de atuação do Ministério Público em defesa da legalidade democrática no Contencioso Administrativo: o exercício da ação pública, por um lado, e a intervenção em juízo como auxiliar do tribunal, por outro.[13] Em seguida, passaremos à análise de cada uma destas linhas de ação.

2.1. O exercício da ação pública

A ação pública é um tipo de ação administrativa exercida por entidades públicas no exercício de um dever de ofício, e não por particulares, fugindo ao paradigma do desencadeamento dos processos administrativos por parte dos particulares.[14] De facto, é possível estabelecer uma diferença entre a legitimidade para defesa de interesses próprios, que existe sempre que autor alega uma posição subjetiva de vantagem no âmbito de uma relação jurídica, e a legitimidade dos indivíduos, das pessoas coletivas, das autarquias locais e do Ministério Público para a defesa da legalidade e do interesse público, no exercício da ação pública e da ação popular.[15] É essa distinção que, segundo Vasco Pereira da Silva, não impede e até prova e justifica que quer o ator público, quer o autor popular sejam considerados verdadeiros sujeitos processuais.[16]

O caso mais relevante de ação pública é aquele em que o Ministério Público assume o seu exercício, sendo esta entidade, por isso, um sujeito processual no verdadeiro sentido do termo.[17] Em 2001, Sérvulo Correia sublinhava que o Ministério Público não detinha poderes processuais, em particular por duas ordens de razões: a primeira, já mencionada, prende-se com a detenção pelo Ministério Público de outros poderes não relacionados com a representação jurisdicional da legalidade democrática; a segunda consiste no facto de a ação pública também incumbir a outros entidades, designadamente no âmbito dos processos de impugnação de atos administrativos, nos termos da alínea e, do n.º 1, do artigo 55.º CPTA.[18] Em 2013, Vasco Pereira da Silva prefere realçar que a ação pública constitui, de facto, o principal poder de intervenção do Ministério Público, graças à reforma do Contencioso Administrativo que revalorizou o respetivo papel de sujeito processual [do Ministério Público] em detrimento da sua intervenção como «auxiliar do juiz». [19]

O CPTA, quanto ao exercício da ação pública, reconhece ao Ministério Público três vertentes de legitimidade. A primeira diz respeito à propositura de ações junto dos tribunais administrativos, em defesa da legalidade, do interesse público, de interesses difusos e de direitos fundamentais, nos termos das seguintes disposições normativas: o n.º 2 do artigo 9.º; a alínea b), do n.º 1 do artigo 55.º; a alínea b), do n.º 1, do artigo 68.º; a alínea b), do n.º 1, do artigo 73.º; o artigo 77.º; as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 77.º-A; o n.º 2 do artigo 104.º; o n.º 1 do artigo 112.º; o n.º 1 do artigo 164.º; o n.º 1 do artigo 176.º.

De entre estes tão variados pedidos que podem estar em questão (pedidos sobre a invalidade dos atos administrativos, pedidos de condenação à prática de atos administrativos, pedidos relativos à invalidade de normas regulamentares ou pedidos de condenação à emissão de normas regulamentares), cabe realçar a extensão da ação pública exercida pelo Ministério Público para pedidos que tenham por base valores constitucionalmente protegidos, tal como estatuído no n.º 2 do artigo 9.º do CPTA. Vasco Pereira da Silva sublinha que, a formulação normativa é merecedora de mérito por estabelecer que, independentemente de terem interesse direto na demandada, quer o autor público, quer o autor popular agem para defesa da legalidade e do interesse público, prosseguindo a tutela objetiva de bens e valores constitucionalmente protegidos. De entre esses bens e valores contam-se, por um lado, a saúde pública, o urbanismo e o ordenamento do território, o ambiente e o património cultural (alínea a), do número 3, do artigo 52.º da Constituição), e, por outro, os bens da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais (alínea b), do número 3 do artigo 52.º da Constituição).[20]

A segunda vertente concede também legitimidade ao Ministério Público para dar continuidade a certos tipos de ações intentadas por particulares, em caso de desistência, ou outra causa de extinção dessas ações, nos termos do artigo 62.º.

Em terceiro lugar, o Ministério Público possui legitimidade ilimitada para recorrer de qualquer decisão proferida pelos tribunais administrativos: artigos 141.º, 152.º e 155.º. Neste contexto, falamos da possibilidade de, para além de intervir no âmbito dos recursos jurisdicionais que não tenha interposto, interpor recursos jurisdicionais de decisões ilegais, recursos para uniformização de jurisprudência e recursos de revisão.[21]

Para o Professor Sérvulo Correia, o mérito deste tipo de ação reside no facto de, graças à iniciativa de um órgão auxiliar da jurisdição administrativa, os tribunais administrativos terem condições para repor a legalidade, mesmo naquelas situações em que a ilegalidade não lesou propriamente um interesse individualizado.[22] De facto, a lesividade para com situações subjetivadas não é o único mal decorrente da ilegalidade administrativa que importa neutralizar.[23] Contudo, para o Autor, não se pode esquecer que o Ministério Público deve mover-se com objetividade e imparcialidade quando ajuíza a verificação de uma ilegalidade administrativa que possa justificar uma reação através de ação pública.[24]  Também Paulo Dias Neves afirma que não é desejável que o Ministério Público persiga todo e qualquer tipo de ilegalidade administrativa no plano do Contencioso Administrativo, devendo ser aceite o princípio de que a atuação do MP se deve restringir ao domínio de uma ilegalidade administrativa qualificada, quer em função da importância dos interesses subjacentes às normas violadas, quer pela intensidade da lesão representada.[25] A título exemplificativo, podem ser utilizados como indicadores de referência o impacto social das situações ilegais, o universo de pessoas afetadas, a possibilidade de reverter ou não os efeitos produzidos, a hipótese de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto estabilizadas (artigo 162.º CPA), a suscetibilidade de ratificação, reforma e conversão (art. 164.º CPA)” e ainda outros “critérios de eficiência, de boa gestão de recursos e também da necessidade de aplicação uniforme da lei”.[26]

2.2. A intervenção em juízo como auxiliar do tribunal

O CPTA prevê, nos seus artigos 85.º e 146.º, a intervenção do Ministério Público em juízo como auxiliar do tribunal em sede de recurso, desta vez nos processos em que não é parte. Esta ingerência do Ministério Público encontra a sua razão de ser no contributo que esta entidade pode oferecer para o melhor esclarecimento dos factos ou a melhor aplicação do direito nos processos de ação administrativa em primeiro grau de jurisdição.[27]

Para tal, está ao seu alcance emitir pareceres sobre o mérito da causa e sobre o mérito dos recursos jurisdicionais (n.º 2 do artigo 85.º e n.º 1 do artigo 146.º). Mas o n.º 2 do artigo 85.º é claro ao estatuir que a emissão desses pareceres que exprimem uma opinião sobre o sentido em que o caso deve ser decidido pelo tribunal só terão lugar quando o Ministério Público entenda que tal se justifica por estar em causa a “defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º” Mário Aroso de Almeida relembra que, com a revisão de 2015, esta possibilidade de intervenção do Ministério Público deixou de estar limitada aos processos que seguem a forma de ação administrativa especial, como acontecia no regime anterior.[28] Para além disso, o Ministério Público pode invocar em processos impugnatórios causas de invalidade não invocadas pelo autor e requerer diligências de prova (números 3 e 4 do artigo 85.º).

Em termos comparativos com o regime anterior, Mário Aroso de Almeida explica que o artigo 85.º é o que resta dos poderes muito amplos de que gozava o Ministério Público nos processos em que não era parte.[29] Anteriormente, estava prevista uma intervenção necessária da sua parte que se consubstanciava em dois momentos: a emissão do visto inicial e a emissão do visto final, com a determinação do sentido da sentença. O Ministério Público tinha, inclusivamente, a possibilidade de suscitar questões de índole processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa por parte do tribunal.[30] Este paradigma de coadjuvação do tribunal para a realização do Direito[31], expressão adotada por Sérvulo Correia, deu lugar a uma nova realidade em que a intervenção do Ministério Público não é necessária – só tem lugar quando o Ministério Público a considerar justificada –, só acontece uma única vez em cada processo nos termos do artigo 85.º, e não pode versar sobre matérias de teor processual, apenas substantivo.[32]

Por fim, refere Sérvulo Correia, que as finalidades que subjazem à conduta do Ministério Público quando desempenha o papel de amicus curiae[33], não podem ser as mesmas que estão presentes na ação pública, quando age como parte.[34]  Mas o que é facto é que, tanto numa como noutra qualidade, está em causa a promoção da legalidade, o que permite, para o Professor, identificar um leque bastante vasto de interesses públicos, todos eles reconduzíveis à ideia muito genérica de legalidade como interesse público na observância do Direito e na sua correta aplicação por parte dos órgãos a quem esta compete.[35]

3.  A representação do Estado

Como já foi mencionado no início desta exposição, o ETAF estatui, na parte final do n.º 1 do artigo 11.º, que o Ministério Público também representa o Estado, fazendo as vezes de seu advogado, nas ações que sejam propostas contra este.[36] É a este propósito que Sérvulo Correia relembra a definição proposta por Freitas do Amaral do Ministério Público como um corpo de advogados do Estado.[37] Por seu turno, a formulação do artigo 51.º do diploma é bastante restrita, pelo que só incumbe ao Ministério Público a representação do Estado, e não de outra entidade qualquer). E, mesmo em relação ao Estado, o n.º 2 do artigo 10.º dispõe que, no que diga respeito à atuação dos Ministérios (casos de ações propostas contra condutas - ativas e omissivas - de órgãos administrativos do Estado no exercício de poderes de autoridade), são estes que detêm a legitimidade passiva propriamente dita, e não o Estado. Naturalmente, nestas situações, o patrocínio judiciário já não incumbe ao Ministério Público.[38]

O problema que surge a respeito deste desígnio de representação do Estado prende-se com a sua conjugação com as incumbências do Ministério Público de defesa da legalidade democrática. Noutras palavras, trata-se de saber o que deve suceder quando o Ministério Público está a exercer a função de representação do Estado, mas, se estivesse no exercício da sua função de defesa da legalidade, identificaria uma situação de violação da legalidade.[39] Sobre esta matéria, verifica-se uma divisão da doutrina: por um lado, os Autores que encontram no artigo 93.º do EMP a solução suficiente para o problema e, por outro lado, Aqueles que consideram que o Ministério Público deve deixar de ter a função de representante do Estado, devendo ser dada ao Estado a possibilidade de escolher o seu representante de entre um advogado solicitado à Ordem dos Advogados ou um funcionário da Administração com competências suficientes para representar a Administração em juízo.

O primeiro setor doutrinário mencionado, no qual se inclui Sérvulo Correia, atende ao disposto no artigo 93.º do EMP que prescreve que, em caso de conflitos entre interesses que o Ministério Público deva representar, o procurador da República solicita à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado.[40] Isto seria bastante para resolver o problema, uma vez que o Ministério Público não tem competência para aferir da legalidade de atos administrativos a priori.[41] Ainda há quem faça distinção entre dois tipos de casos. Naqueles em que a ilegalidade dos atos administrativos se consegue aferir de imediato por qualquer sujeito, o Ministério Público deve abster-se de representar o Estado em juízo, dado o conflito entre a manutenção da legalidade e a defesa do Estado, sendo que aquela prevalece (claramente) sobre este.[42] Mas nas situações em que a ilegalidade não é óbvia, é legítimo que o Ministério Público seja representante do Estado, já que àquele não é permitido efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade ou ilegalidade do ato (juízo que incumbe primariamente e em absoluto ao juiz).[43]

Em sentido contrário, o segundo grupo de Autores, entre os quais Alexandra Leitão, prefere outra orientação: Nestes termos, parece-me que o artigo 69.º (hoje, o atual artigo 93.º) do Estatuto do Ministério Público assume um papel relativamente reduzido na resolução de eventuais contradições entre as funções de defesa da legalidade e de representação do Estado, porquanto os magistrados do Ministério Público só devem lançar mão do mesmo em situações de manifesta ilegalidade.[44] Acrescenta ainda que a melhor solução seria retirar ao Ministério Público a função de representação do Estado exatamente para evitar situações de conflito entre a defesa da legalidade e a defesa do Estado.[45] No mesmo sentido, pronunciou-se Vasco Pereira da Silva a propósito da Reforma de 2019 que não alterou no essencial a solução que havia consagrado em 2015 de considerar como mandatários em juízo, das autoridades públicas, os advogados, os solicitadores, os licenciados em Direito com funções de apoio jurídico, além do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA.[46] A única alteração a assinalar foi a consagração da intervenção do Ministério Público como uma mera possibilidade. Para o Autor, embora esta mudança não tenha qualquer sentido útil[47], poderá talvez ser justificada pela tomada de consciência pelo legislador da perversidade da solução de fazer do Ministério Público o mandatário genérico da Administração, quando ele é simultaneamente o titular da ação pública[48]. Solução essa que o Professor apelida de um absurdo[49], devido à sua idoneidade para pôr em causa a existência de um processo equitativo (nos casos em que o Ministério Público se poderia apresentar como autor e mandatário da ré)[50].

4. Considerações finais

A opção do legislador ordinário pela dispersão normativa da concretização das atribuições do Ministério Público, previstas genericamente a nível constitucional, acarreta para esta matéria uma complexidade significativa no ordenamento jurídico português, a que não escapa o Contencioso Administrativo. Nem mesmo as várias reformas desta disciplina se mostraram adequadas para esclarecer com clareza os parâmetros exatos de atuação do Ministério Público, designadamente a extensão do mandato genérico de “defesa da legalidade democrática”.

Para além disso, tal como o regime português se encontra atualmente, o Ministério Público pode ver-se confrontado com a escolha difícil e obscura entre o desempenho da sua função de prossecução do interesse público, na forma de defesa da legalidade, ou da sua função de representação do Estado. Parece impossível esconder o conflito de interesses aqui subjacente, capaz de colocar em causa o princípio constitucional elementar do Estado de Direito Democrático.         

Por tudo isto, uma resposta do legislador para este assunto é urgente, nem que seja, em primeiro lugar, no sentido de impedir que o Ministério Público, enquanto parte no processo, seja simultaneamente mandatário da Administração.

Lista bibliográfica

Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016.

 

Correia, J. M. Sérvulo, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

 

Furtado, Leonor do Rosário Mesquita, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Antunes, Maria João, Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 769-780.

 

Leitão, Alexandra (2013, Maio-Ago.), A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, Julgar, n.º 20.

 

Neves, Paulo Dias, Notas sobre a defesa da legalidade pelo Ministério Público no CPTA revisto, in Gomes, Carla Amado/ Neves, Ana Fernanda/ Serrão, Tiago, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2016, pp. 317-340.

 

Silva, Cláudia Alexandra dos Santos (2016, abril), O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, e-Pública, Vol. 3, n.º 1, Lisboa, disponível em: https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010&lng=es&nrm=iso .

 

Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013.

 

Silva, Vasco Pereira da (2019, Dezembro), Revisitando a “reforminha” do Processo Administrativo de 2019 – “Do Útil, do Supérfluo e do Erróneo”, e-Pública, Vol. 6, n.º 3, Lisboa, disponível em: file:///C:/Users/Sofia/Downloads/34316-revisitando-a-reforminha-do-processo-administrativo-de-2019-do-util-do-superfluo-e-do-erroneo.pdf .



*Aluna do Curso de Licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

[2] Paulo Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade pelo Ministério Público no CPTA revisto, in Carla Amado Gomes/ Ana Fernanda Neves/ Tiago Serrão, Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2016, p.523.

[3] Idem, pp. 522-523.

[4] Cfr. idem, p. 523.

[5] Cfr. J. M. Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as funções do Ministério Público, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 299. Para uma breve análise de Direito comparado que levou à afirmação desta conclusão, consultar as pp. 295-299.

[6] Idem, p.300.

[7] Paulo Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 521.

[8] Vide Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 300. Para uma perspetiva histórica do Ministério Público como instituição no nosso Contencioso Administrativo, consultar as pp. 300-303.

[9] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 312.

[10] Paulo Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 532.

[11] Idem, p. 533.

[12] Ibidem. Para ver mais sobre a perspetiva do Autor sobre a forma como esta definição de competências tem acontecido e deve acontecer a três níveis – o do legislador, o da estrutura hierárquica do MP e o de cada magistrado – consultar as pp. 534-537. O Autor designa para o legislador os critérios fundamentais, para a estrutura hierárquica do MP os aspetos com uma natureza mais de detalhe obedecendo aos parâmetros legais pré-fixados pelo legislador (por exemplo, orientações genéricas emitidas pelo Procurador-Geral para assegurar a boa gestão e eficiência da atuação do MP – artigos 10.º/c) e 12.º/2/b) do EMP), e reconhece um domínio de discricionariedade na decisão individual de cada magistrado do MP que vai depender da íntima convicção que ele adquirir no caso concreto.

[13] Idem, pp. 524-525.

[14] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 58.

[15] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 272.

[16] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã cit., p. 271, quando o autor afirma: “Daí que, ao lado dos sujeitos privados, que atuam para a defesa de interesses próprios, seja também preciso considerar como sujeitos processuais o ator público e o ator popular, que atuam para a defesa da legalidade e do interesse público, realizando de forma direta a função objetiva, ainda que no quadro de um processo organizado estruturalmente em termos subjetivos.”.

[17] Idem, p.272.

[18] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 305.

[19] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã cit., p. 271.

[20] Idem, pp. 271-272.

[21] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 60.

[22] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 308.

[23] Ibidem. Cfr. também idem, p. 306, quando o Autor começa por perguntar de forma retórica, se, nos termos do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, “o Ministério Público existe, designadamente, para se encarregar desta função de defesa [da legalidade democrática], que sentido faria privá-lo do acesso aos tribunais por iniciativa própria, reduzindo-o a uma intervenção suplementar, dependente do prévio exercício do direito de ação por particulares?”.

[24] Idem, p. 314.

[25] Paulo Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 534.

[26] Ibidem. Vide também Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., pp. 315-316, em que o Autor, com estes outros critérios também em vista, afirma que o critério (para agir ou não agir) da maior gravidade formal da ilegalidade das situações, “embora (…) mereça ser incorporado na ponderação (…), também não é de crer que, quando reduzido a fator único de apreciação, se revelasse bastante, ou mesmo conveniente”. Assim sendo, o Professor sugere que a fórmula que deve servir de base a uma decisão afirmativa de reagir perante uma ilegalidade administrativa tenha em conta, para além da legalidade objetiva, “afloramentos de outros interesses públicos lesados pelo ato ilegal no caso concreto”. Ou seja, importará tanto mais reagir quanto mais a quantidade de interesses públicos que podem ser servidos em simultâneo com a defesa da legalidade democrática.

[27] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 64.

[28] Ibidem.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 304.

[32] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 64.

[33] Expressão latina, nascida no sistema inglês de “Common Law” e que vigora, até hoje, nos Estados Unidos da América, com o significado “amigo do tribunal” ou “amigo da corte”. É geralmente utilizada para designar uma instituição que tem por finalidade fornecer contributos às decisões dos tribunais, oferecendo--lhes uma base mais sólida para questões relevantes e de grande impacto.

[34] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 314.

[35] Ibidem.

[36] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 63.

[37] Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 320.

[38] O seu patrocínio judiciário cabe a licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, cuja designação cabe, em regra ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou ministério, nos termos do n.º 3 do art. 11.º do CPTA.

Vide também o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA, segundo a qual, nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo. Na  declaração de voto de José Figueiredo Dias concordante com a decisão lê-se: “O exercício dessa representação pelo Ministério Público decorre diretamente da ordem jurídico-constitucional, pelo que está vedada ao legislador ordinário a possibilidade de criação de um novo paradigma de representação judicial do Estado que ponha em causa a reserva constitucional de competência do Ministério Público, a definição de um outro modelo de representação a nível infraconstitucional, designadamente que confira um papel subsidiário, supletivo ou optativo à intervenção desta magistratura como representante judicial do Estado.”

Para uma visão abrangente sobre o problema de representação das autarquias locais pelo Ministério Público, vide Leonor do Rosário Mesquita Furtado, A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Maria João Antunes, Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 769-780 e Cláudia Alexandra dos Santos Silva (2016, abril), O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, e-Pública, Vol. 3, n.º 1, Lisboa, disponível em: https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010&lng=es&nrm=iso .

[39] Cfr. C. A. Santos Silva, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, cit. quando a Autora diz que “é exatamente nas situações em que a atuação administrativa é ilegal ou de duvidosa legalidade que o Ministério Público se encontra numa encruzilhada entre a prossecução do interesse público e a defesa da legalidade democrática”.

[40] Cfr. Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 317, onde o Autor propõe esta solução, mas sublinha que esta possibilidade concedida pelo n.º 1 do artigo 93 do EMP (antigo n.º 1 do artigo 69.º) se trata de “um remédio reservado a casos extremos”.

[41] C. A. Santos Silva, O Ministério Público no atual contencioso administrativo português, cit.

[42]  Idem.

[43]  Idem.

[44] Alexandra Leitão (2013, Maio-Ago.), A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, Julgar, n.º 20, p. 200.

[45] Ibidem.

[46]  Vasco Pereira da Silva (2019, Dezembro), Revisitando a “reforminha” do Processo Administrativo de 2019 – “Do Útil, do Supérfluo e do Erróneo”, e-Pública, Vol. 6, n.º 3, Lisboa, p. 12, disponível em: file:///C:/Users/Sofia/Downloads/34316-revisitando-a-reforminha-do-processo-administrativo-de-2019-do-util-do-superfluo-e-do-erroneo.pdf .

[47] Ibidem.

[48] Ibidem.

[49] Ibidem.

[50] Ibidem.


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