A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONTENCIOSO
ADMINISTRATIVO
Sofia Figueiredo Ferreira[1]*
SUMÁRIO: 1. O papel do Ministério
Público enquadrado no Contencioso Administrativo. 2. Os parâmetros de atuação
do Ministério Público na defesa da legalidade. 2.1. O exercício da ação pública.
2.2. A intervenção em juízo como auxiliar do tribunal. 3. A representação do
Estado. 4. Considerações finais.
1. 1. O
papel do Ministério Público enquadrado no Contencioso Administrativo
Uma análise sobre as competências do
Ministério Público no nosso ordenamento jurídico e, eventualmente de forma mais
concreta no Contencioso Administrativo português, não poderia deixar de partir
da disposição do artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa. Este
preceito constitucional estabelece as atribuições do Ministério Público que,
naturalmente, têm reflexo no Contencioso Administrativo. Logo no início do n.º 1 do artigo, surge a
menção à primeira função: a representativa. Para Paulo Dias Neves, esta função prende-se com o modo
concreto como o próprio Estado, em cada momento e contexto, perspetiva a melhor
forma de prosseguir o interesse público no respeito pela legalidade e pelos
direitos e interesses legalmente protegidos pelos particulares.[2]
A outra grande função enunciada é a da defesa da legalidade democrática que,
por sua vez, é explicada por este Autor como o critério orientador das
demais atribuições do Ministério Público, num sentido amplo que inclui, para
além da tutela da legalidade objetiva, também a defesa dos vários interesses
difusos e outros que a lei lhe confere.[3]
Pelo
que foi enunciado, Paulo Dias Neves
adota o entendimento dos Professores Figueiredo
Dias e Vieira de Andrade
quanto à natureza do Ministério Público, considerando-o uma instituição
administrativa que colabora com o poder judicial, mas que não se confunde com
ele.[4]
O caráter materialmente administrativo, e não jurisdicional, da sua atividade
está sobretudo patente na deteção da ilegalidade administrativa e na
propositura e condução da ação pública, que analisaremos de forma mais concreta
a breve trecho.
Mas
o interesse no tratamento desta matéria do papel do Ministério Público na nossa
ordem jurídica reside na importância de precisar, tanto mais por se tratar de
um poder público, o seu âmbito de atuação, o que ao longo dos anos se tem
revelado complexo e controverso. Com base numa análise de outros ordenamentos
jurídicos, Sérvulo Correia chega à
conclusão que estes se situam entre dois polos: o de uma intervenção imparcial
para a promoção da solução conforme com a legalidade e o do patrocínio
judiciário público da Administração estadual, normalmente também acompanhado de
consulta jurídica.[5] O modelo
português, por sua vez, apresenta uma maior complexidade, encerrando um leque
variado de atuações: ora o Ministério Público intervém no Contencioso Administrativo
em defesa imparcial da legalidade, ora assume a veste de patrono forense da
Administração em juízo.[6]
Se
se pudesse pensar que as várias reformas no Contencioso Administrativo haviam
trazido mais clareza a este assunto, essa parece não ser a opinião da
generalidade dos Autores.
Paulo Dias Neves sublinha que a Revisão de
2015 ao CPTA, operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 2 de outubro, não
trouxe alterações significativas ao papel e atuação do Ministério Público no Contencioso
Administrativo, sendo consensual que se tratou de uma oportunidade desperdiçada
para “aligeirar” a missão obsoleta de representação do Estado, a que depois
daremos mais enfoque nesta exposição. Por outro lado, assinala também que se
poderiam ter definido melhor os parâmetros legais de atuação do Ministério
Público na sua tarefa de defesa da legalidade democrática no plano do
Contencioso Administrativo.[7]
Em 2001, Sérvulo Correia já falava
também da necessidade de determinar com maior clareza as finalidades da
participação do Ministério Público e que estas apresentassem uma coerência no
seio do modelo português.[8]
2. 2. Os
parâmetros de atuação do Ministério Público na defesa da legalidade
Numa
aceção ampla, a função de defesa da legalidade por parte do Ministério Público
é retirada de dois (dos três) enunciados aplicáveis à jurisdição administrativa
contidos no já indicado artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa: “defender
os interesses que a lei determinar” e “defender a legalidade democrática”. Para
Sérvulo Correia, nenhum deles se
mostra totalmente claro quanto à natureza dos interesses a prosseguir, uma vez
que, no primeiro, remete-se apenas para a identificação pelo legislador
ordinário e, do segundo, pode dizer-se que a defesa da legalidade democrática constitui
em si um interesse público primordial.[9]
Mas, para Paulo Dias Neves, é
natural que a norma constitucional não densifique o suficiente, tendo em conta
que as atribuições, competências e títulos do Ministério Público encontram-se
dispersos por outros diplomas variados, como o Estatuto do Ministério Público,
o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e demais legislação avulsa.[10]
A
defesa da legalidade democrática a que se refere a Constituição é reeditada e
referida novamente no artigo 51.º do ETAF – “defender a legalidade democrática
e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os
poderes que a lei lhe confere” – e no artigo 3.º da Lei de Organização do
Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto) – “defende a legalidade
democrática, nos termos da Constituição, do respetivo estatuto e da lei”. O
Estatuto do Ministério Público, por sua vez, reafirma o que é dito na
Constituição, mas com ligeiras alterações – “defende os interesses que a lei
determinar e defende a igualdade democrática nos termos da Constituição, do
presente estatuto, e da lei.” – artigo 2.º do EMP. No artigo 4.º do EMP
enumeram-se algumas das competências do Ministério Público, embora não exista
nenhuma referência expressa à defesa da legalidade administrativa, à
fiscalização e impugnação de atos, normas regulamentares ou contratos no
Contencioso Administrativo, cabendo tudo isto nas referidas “demais funções
conferidas por lei” mencionadas na alínea r, do n.º 1 do mesmo artigo. Quanto
ao diploma do CPTA, este, por sua vez, faz referência a várias situações em que
o Ministério Público está investido de “legitimidade”. A este propósito, Paulo Dias Neves relembra que esta não deve ser entendida
como uma verdadeira legitimidade no sentido próprio do termo, pois o que está
efetivamente em causa é a suscetibilidade de o Ministério Público exercer as
suas competências legais em juízo.[11]
Para lá chegar, pressupõe-se o apuramento da “verdadeira” legitimidade num
momento anterior.
A observação do disposto
em todos estes diplomas leva Paulo Dias
Neves a concluir pela sua insuficiência quanto à concretização das competências
do Ministério Público aquando da defesa da legalidade no Contencioso Administrativo
(no EMP ou em legislação avulsa). Além disso, propõe a criação de uma
disciplina de apuramento da sua legitimidade, em sede de disposições gerais.[12]
Tendo
em consideração o âmbito exclusivo de aplicação do CPTA, estas são as formas de
atuação do Ministério Público em defesa da legalidade democrática no Contencioso
Administrativo: o exercício da ação pública, por um lado, e a intervenção em
juízo como auxiliar do tribunal, por outro.[13]
Em seguida, passaremos à análise de cada uma destas linhas de ação.
2.1.
O exercício da ação pública
A
ação pública é um tipo de ação administrativa exercida por entidades públicas
no exercício de um dever de ofício, e não por particulares, fugindo ao
paradigma do desencadeamento dos processos administrativos por parte dos
particulares.[14] De
facto, é possível estabelecer uma diferença entre a legitimidade para defesa de
interesses próprios, que existe sempre que autor alega uma posição subjetiva de
vantagem no âmbito de uma relação jurídica, e a legitimidade dos indivíduos,
das pessoas coletivas, das autarquias locais e do Ministério Público para a
defesa da legalidade e do interesse público, no exercício da ação pública e da
ação popular.[15]
É essa distinção que, segundo Vasco
Pereira da Silva, não impede e até prova e justifica que quer o ator
público, quer o autor popular sejam considerados verdadeiros sujeitos
processuais.[16]
O
caso mais relevante de ação pública é aquele em que o Ministério Público assume
o seu exercício, sendo esta entidade, por isso, um sujeito processual no
verdadeiro sentido do termo.[17]
Em 2001, Sérvulo Correia sublinhava
que o Ministério Público não detinha poderes processuais, em particular por
duas ordens de razões: a primeira, já mencionada, prende-se com a detenção pelo
Ministério Público de outros poderes não relacionados com a representação
jurisdicional da legalidade democrática; a segunda consiste no facto de a ação
pública também incumbir a outros entidades, designadamente no âmbito dos
processos de impugnação de atos administrativos, nos termos da alínea e, do n.º
1, do artigo 55.º CPTA.[18]
Em 2013, Vasco Pereira da Silva
prefere realçar que a ação pública constitui, de facto, o principal poder de
intervenção do Ministério Público, graças à reforma do Contencioso
Administrativo que revalorizou o respetivo papel de
sujeito processual [do Ministério Público] em detrimento da sua
intervenção como «auxiliar do juiz». [19]
O
CPTA, quanto ao exercício da ação pública, reconhece ao Ministério Público três
vertentes de legitimidade. A primeira diz respeito à propositura de ações junto
dos tribunais administrativos, em defesa da legalidade, do interesse público,
de interesses difusos e de direitos fundamentais, nos termos das seguintes
disposições normativas: o n.º 2 do artigo 9.º; a alínea b), do n.º 1 do artigo
55.º; a alínea b), do n.º 1, do artigo 68.º; a alínea b), do n.º 1, do artigo
73.º; o artigo 77.º; as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 77.º-A; o n.º 2 do
artigo 104.º; o n.º 1 do artigo 112.º; o n.º 1 do artigo 164.º; o n.º 1 do
artigo 176.º.
De
entre estes tão variados pedidos que podem estar em questão (pedidos sobre a
invalidade dos atos administrativos, pedidos de condenação à prática de atos
administrativos, pedidos relativos à invalidade de normas regulamentares ou
pedidos de condenação à emissão de normas regulamentares), cabe realçar a
extensão da ação pública exercida pelo Ministério Público para pedidos que
tenham por base valores constitucionalmente protegidos, tal como estatuído no
n.º 2 do artigo 9.º do CPTA. Vasco Pereira da Silva sublinha que, a formulação normativa
é merecedora de mérito por estabelecer que, independentemente de terem
interesse direto na demandada, quer o autor público, quer o autor popular agem
para defesa da legalidade e do interesse público, prosseguindo a tutela
objetiva de bens e valores constitucionalmente protegidos. De entre esses bens
e valores contam-se, por um lado, a saúde pública, o urbanismo e o ordenamento
do território, o ambiente e o património cultural (alínea a), do número 3, do
artigo 52.º da Constituição), e, por outro, os bens da titularidade do Estado,
das regiões autónomas ou das autarquias locais (alínea b), do número 3 do
artigo 52.º da Constituição).[20]
A
segunda vertente concede também legitimidade ao Ministério Público para dar
continuidade a certos tipos de ações intentadas por particulares, em caso de
desistência, ou outra causa de extinção dessas ações, nos termos do artigo
62.º.
Em
terceiro lugar, o Ministério Público possui legitimidade ilimitada para
recorrer de qualquer decisão proferida pelos tribunais administrativos: artigos
141.º, 152.º e 155.º. Neste contexto, falamos da possibilidade de, para além de
intervir no âmbito dos recursos jurisdicionais que não tenha interposto,
interpor recursos jurisdicionais de decisões ilegais, recursos para
uniformização de jurisprudência e recursos de revisão.[21]
Para
o Professor Sérvulo Correia, o
mérito deste tipo de ação reside no facto de, graças à iniciativa de um órgão
auxiliar da jurisdição administrativa, os tribunais administrativos terem
condições para repor a legalidade, mesmo naquelas situações em que a
ilegalidade não lesou propriamente um interesse individualizado.[22]
De facto, a lesividade para com situações subjetivadas não é o único mal
decorrente da ilegalidade administrativa que importa neutralizar.[23]
Contudo, para o Autor, não se pode esquecer que o Ministério Público deve
mover-se com objetividade e imparcialidade quando ajuíza a verificação de uma
ilegalidade administrativa que possa justificar uma reação através de ação
pública.[24] Também Paulo
Dias Neves afirma que não é desejável que o Ministério Público persiga
todo e qualquer tipo de ilegalidade administrativa no plano do Contencioso
Administrativo, devendo ser aceite o princípio de que a atuação do MP se
deve restringir ao domínio de uma ilegalidade administrativa qualificada, quer
em função da importância dos interesses subjacentes às normas violadas, quer
pela intensidade da lesão representada.[25]
A título exemplificativo, podem ser utilizados como indicadores de referência o
impacto social das situações ilegais, o universo de pessoas afetadas, a
possibilidade de reverter ou não os efeitos produzidos, a hipótese de atribuição
de efeitos jurídicos a situações de facto estabilizadas (artigo 162.º CPA), a
suscetibilidade de ratificação, reforma e conversão (art. 164.º CPA)” e
ainda outros “critérios de eficiência, de boa gestão de recursos e também da
necessidade de aplicação uniforme da lei”.[26]
2.2.
A intervenção em juízo como auxiliar do tribunal
O
CPTA prevê, nos seus artigos 85.º e 146.º, a intervenção do Ministério Público
em juízo como auxiliar do tribunal em sede de recurso, desta vez nos processos
em que não é parte. Esta ingerência do Ministério Público encontra a sua razão
de ser no contributo que esta entidade pode oferecer para o melhor
esclarecimento dos factos ou a melhor aplicação do direito nos processos de
ação administrativa em primeiro grau de jurisdição.[27]
Para
tal, está ao seu alcance emitir pareceres sobre o mérito da causa e sobre o
mérito dos recursos jurisdicionais (n.º 2 do artigo 85.º e n.º 1 do artigo
146.º). Mas o n.º 2 do artigo 85.º é claro ao estatuir que a emissão desses
pareceres que exprimem uma opinião sobre o sentido em que o caso deve ser
decidido pelo tribunal só terão lugar quando o Ministério Público entenda que
tal se justifica por estar em causa a “defesa dos direitos fundamentais dos
cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos
valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º” Mário Aroso de Almeida relembra que, com a revisão de 2015,
esta possibilidade de intervenção do Ministério Público deixou de estar
limitada aos processos que seguem a forma de ação administrativa especial, como
acontecia no regime anterior.[28]
Para além disso, o Ministério Público pode invocar em processos impugnatórios
causas de invalidade não invocadas pelo autor e requerer diligências de prova
(números 3 e 4 do artigo 85.º).
Em
termos comparativos com o regime anterior, Mário
Aroso de Almeida explica que o
artigo 85.º é o que resta dos poderes muito amplos de que gozava o Ministério
Público nos processos em que não era parte.[29]
Anteriormente, estava prevista uma intervenção necessária da sua parte que se
consubstanciava em dois momentos: a emissão do visto inicial e a emissão do
visto final, com a determinação do sentido da sentença. O Ministério Público
tinha, inclusivamente, a possibilidade de suscitar questões de índole
processual que pudessem obstar à apreciação do mérito da causa por parte do
tribunal.[30] Este
paradigma de coadjuvação do tribunal para a realização do Direito[31],
expressão adotada por Sérvulo Correia,
deu lugar a uma nova realidade em que a intervenção do Ministério Público não é
necessária – só tem lugar quando o Ministério Público a considerar justificada
–, só acontece uma única vez em cada processo nos termos do artigo 85.º, e não
pode versar sobre matérias de teor processual, apenas substantivo.[32]
Por
fim, refere Sérvulo Correia, que
as finalidades que subjazem à conduta do Ministério Público quando desempenha o
papel de amicus curiae[33],
não podem ser as mesmas que estão presentes na ação pública, quando age como
parte.[34] Mas o que é facto é que, tanto numa como
noutra qualidade, está em causa a promoção da legalidade, o que permite, para o
Professor, identificar um leque bastante vasto de interesses públicos, todos
eles reconduzíveis à ideia muito genérica de legalidade como interesse público
na observância do Direito e na sua correta aplicação por parte dos órgãos a
quem esta compete.[35]
3.
A representação do Estado
Como
já foi mencionado no início desta exposição, o ETAF estatui, na parte final do
n.º 1 do artigo 11.º, que o Ministério Público também representa o Estado, fazendo
as vezes de seu advogado, nas ações que sejam propostas contra este.[36]
É a este propósito que Sérvulo Correia
relembra a definição proposta por Freitas
do Amaral do Ministério Público como um corpo de advogados do Estado.[37]
Por seu turno, a formulação do artigo 51.º do diploma é bastante restrita, pelo
que só incumbe ao Ministério Público a representação do Estado, e não de outra
entidade qualquer). E, mesmo em relação ao Estado, o n.º 2 do artigo 10.º
dispõe que, no que diga respeito à atuação dos Ministérios (casos de ações
propostas contra condutas - ativas e omissivas - de órgãos administrativos do
Estado no exercício de poderes de autoridade), são estes que detêm a
legitimidade passiva propriamente dita, e não o Estado. Naturalmente, nestas
situações, o patrocínio judiciário já não incumbe ao Ministério Público.[38]
O
problema que surge a respeito deste desígnio de representação do Estado prende-se
com a sua conjugação com as incumbências do Ministério Público de defesa da
legalidade democrática. Noutras palavras, trata-se de saber o que deve suceder
quando o Ministério Público está a exercer a função de representação do Estado,
mas, se estivesse no exercício da sua função de defesa da legalidade,
identificaria uma situação de violação da legalidade.[39]
Sobre esta matéria, verifica-se uma divisão da doutrina: por um lado, os
Autores que encontram no artigo 93.º do EMP a solução suficiente para o
problema e, por outro lado, Aqueles que consideram que o Ministério Público
deve deixar de ter a função de representante do Estado, devendo ser dada ao
Estado a possibilidade de escolher o seu representante de entre um advogado
solicitado à Ordem dos Advogados ou um funcionário da Administração com
competências suficientes para representar a Administração em juízo.
O
primeiro setor doutrinário mencionado, no qual se inclui Sérvulo Correia, atende ao disposto no artigo
93.º do EMP que prescreve que, em caso de conflitos entre interesses que o
Ministério Público deva representar, o procurador da República solicita à Ordem
dos Advogados a indicação de um advogado.[40]
Isto seria bastante para resolver o problema, uma vez que o Ministério
Público não tem competência para aferir da legalidade de atos
administrativos a priori.[41] Ainda
há quem faça distinção entre dois tipos de casos. Naqueles em que a ilegalidade
dos atos administrativos se consegue aferir de imediato por qualquer sujeito, o
Ministério Público deve abster-se de representar o Estado em juízo, dado o
conflito entre a manutenção da legalidade e a defesa do Estado, sendo que aquela
prevalece (claramente) sobre este.[42]
Mas nas situações em que a ilegalidade não é óbvia, é legítimo que o
Ministério Público seja representante do Estado, já que àquele não é
permitido efetuar um juízo definitivo quanto à legalidade ou ilegalidade do ato
(juízo que incumbe primariamente e em absoluto ao juiz).[43]
Em
sentido contrário, o segundo grupo de Autores, entre os quais Alexandra Leitão, prefere outra
orientação: Nestes termos, parece-me que o artigo 69.º (hoje, o atual
artigo 93.º) do Estatuto do Ministério Público assume um papel relativamente
reduzido na resolução de eventuais contradições entre as funções de defesa da
legalidade e de representação do Estado, porquanto os magistrados do Ministério
Público só devem lançar mão do mesmo em situações de manifesta ilegalidade.[44]
Acrescenta ainda que a melhor solução seria retirar ao Ministério Público a
função de representação do Estado exatamente para evitar situações de conflito
entre a defesa da legalidade e a defesa do Estado.[45]
No mesmo sentido, pronunciou-se Vasco
Pereira da Silva a propósito da Reforma de 2019 que não alterou no
essencial a solução que havia consagrado em 2015 de considerar como mandatários
em juízo, das autoridades públicas, os advogados, os solicitadores, os
licenciados em Direito com funções de apoio jurídico, além do Ministério
Público, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do CPTA.[46]
A única alteração a assinalar foi a consagração da intervenção do Ministério
Público como uma mera possibilidade. Para o Autor, embora esta mudança não
tenha qualquer sentido útil[47],
poderá talvez ser justificada pela tomada de consciência pelo legislador da
perversidade da solução de fazer do Ministério Público o mandatário genérico
da Administração, quando ele é simultaneamente o titular da ação pública[48].
Solução essa que o Professor apelida de um absurdo[49],
devido à sua idoneidade para pôr em causa a existência de um processo
equitativo (nos casos em que o Ministério Público se poderia apresentar como
autor e mandatário da ré)[50].
4.
Considerações finais
A
opção do legislador ordinário pela dispersão normativa da concretização das
atribuições do Ministério Público, previstas genericamente a nível
constitucional, acarreta para esta matéria uma complexidade significativa no
ordenamento jurídico português, a que não escapa o Contencioso Administrativo. Nem
mesmo as várias reformas desta disciplina se mostraram adequadas para
esclarecer com clareza os parâmetros exatos de atuação do Ministério Público,
designadamente a extensão do mandato genérico de “defesa da legalidade
democrática”.
Para
além disso, tal como o regime português se encontra atualmente, o Ministério
Público pode ver-se confrontado com a escolha difícil e obscura entre o
desempenho da sua função de prossecução do interesse público, na forma de
defesa da legalidade, ou da sua função de representação do Estado. Parece
impossível esconder o conflito de interesses aqui subjacente, capaz de colocar
em causa o princípio constitucional elementar do Estado de Direito Democrático.
Por
tudo isto, uma resposta do legislador para este assunto é urgente, nem que
seja, em primeiro lugar, no sentido de impedir que o Ministério Público,
enquanto parte no processo, seja simultaneamente mandatário da Administração.
Lista
bibliográfica
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Artur Maurício, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 769-780.
Leitão, Alexandra (2013,
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da legalidade pelo Ministério Público no CPTA revisto, in Gomes, Carla Amado/ Neves, Ana Fernanda/ Serrão, Tiago, Comentários à
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[2] Paulo
Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade pelo Ministério
Público no CPTA revisto, in Carla
Amado Gomes/ Ana Fernanda Neves/ Tiago Serrão, Comentários à
revisão do ETAF e do CPTA, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2016, p.523.
[3] Idem, pp. 522-523.
[4] Cfr. idem, p. 523.
[5] Cfr.
J. M. Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo e as
funções do Ministério Público, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues,
I, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 299. Para uma breve análise de Direito
comparado que levou à afirmação desta conclusão, consultar as pp. 295-299.
[6] Idem, p.300.
[7] Paulo
Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 521.
[8] Vide
Sérvulo Correia, A reforma
do contencioso administrativo cit., p. 300. Para uma perspetiva histórica
do Ministério Público como instituição no nosso Contencioso Administrativo,
consultar as pp. 300-303.
[9] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 312.
[10] Paulo
Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 532.
[11] Idem, p. 533.
[12] Ibidem. Para ver mais sobre
a perspetiva do Autor sobre a forma como esta definição de competências tem
acontecido e deve acontecer a três níveis – o do legislador, o da estrutura
hierárquica do MP e o de cada magistrado – consultar as pp. 534-537. O Autor
designa para o legislador os critérios fundamentais, para a estrutura
hierárquica do MP os aspetos com uma natureza mais de detalhe obedecendo aos
parâmetros legais pré-fixados pelo legislador (por exemplo, orientações
genéricas emitidas pelo Procurador-Geral para assegurar a boa gestão e
eficiência da atuação do MP – artigos 10.º/c) e 12.º/2/b) do EMP), e reconhece
um domínio de discricionariedade na decisão individual de cada magistrado do MP
que vai depender da íntima convicção que ele adquirir no caso concreto.
[13] Idem, pp. 524-525.
[14] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2016, p. 58.
[15] Vasco
Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 272.
[16] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no
Divã cit., p. 271, quando o autor afirma: “Daí que, ao lado dos sujeitos
privados, que atuam para a defesa de interesses próprios, seja também preciso
considerar como sujeitos processuais o ator público e o ator popular, que atuam
para a defesa da legalidade e do interesse público, realizando de forma direta
a função objetiva, ainda que no quadro de um processo organizado
estruturalmente em termos subjetivos.”.
[17] Idem, p.272.
[18] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 305.
[19] Vasco
Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã cit., p.
271.
[20] Idem, pp. 271-272.
[21] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 60.
[22] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 308.
[23] Ibidem. Cfr. também idem,
p. 306, quando o Autor começa por perguntar de forma retórica, se, nos termos
do n.º 1 do artigo 219.º da CRP, “o Ministério Público existe, designadamente,
para se encarregar desta função de defesa [da legalidade democrática], que
sentido faria privá-lo do acesso aos tribunais por iniciativa própria,
reduzindo-o a uma intervenção suplementar, dependente do prévio exercício do
direito de ação por particulares?”.
[24] Idem, p. 314.
[25] Paulo
Dias Neves, Notas sobre a defesa da legalidade cit., p. 534.
[26] Ibidem.
Vide também Sérvulo Correia, A
reforma do contencioso administrativo cit., pp. 315-316, em que o Autor, com
estes outros critérios também em vista, afirma que o critério (para agir ou não
agir) da maior gravidade formal da ilegalidade das situações, “embora
(…) mereça ser incorporado na ponderação (…), também não é de crer que, quando
reduzido a fator único de apreciação, se revelasse bastante, ou mesmo
conveniente”. Assim sendo, o Professor sugere que a fórmula que deve servir de
base a uma decisão afirmativa de reagir perante uma ilegalidade administrativa
tenha em conta, para além da legalidade objetiva, “afloramentos de outros
interesses públicos lesados pelo ato ilegal no caso concreto”. Ou seja,
importará tanto mais reagir quanto mais a quantidade de interesses públicos que
podem ser servidos em simultâneo com a defesa da legalidade democrática.
[27] Mário Aroso
de Almeida, Manual
de Processo Administrativo
cit., p. 64.
[28] Ibidem.
[29] Ibidem.
[30] Ibidem.
[31] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 304.
[32] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 64.
[33] Expressão latina, nascida no
sistema inglês de “Common Law” e que vigora, até hoje, nos Estados Unidos da
América, com o significado “amigo do tribunal” ou “amigo da corte”. É
geralmente utilizada para designar uma instituição que tem por finalidade
fornecer contributos às decisões dos tribunais, oferecendo--lhes uma base mais
sólida para questões relevantes e de grande impacto.
[34] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 314.
[35] Ibidem.
[36] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo cit., p. 63.
[37] Sérvulo
Correia, A reforma do contencioso administrativo cit., p. 320.
[38] O seu patrocínio judiciário cabe a licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, cuja designação cabe, em regra ao auditor jurídico ou ao responsável máximo pelos serviços jurídicos da pessoa coletiva ou ministério, nos termos do n.º 3 do art. 11.º do CPTA.
Vide também o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 539/2024 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA, segundo a qual, nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo. Na declaração de voto de José Figueiredo Dias concordante com a decisão lê-se: “O exercício dessa representação pelo Ministério Público decorre diretamente da ordem jurídico-constitucional, pelo que está vedada ao legislador ordinário a possibilidade de criação de um novo paradigma de representação judicial do Estado que ponha em causa a reserva constitucional de competência do Ministério Público, a definição de um outro modelo de representação a nível infraconstitucional, designadamente que confira um papel subsidiário, supletivo ou optativo à intervenção desta magistratura como representante judicial do Estado.”
Para uma visão abrangente sobre o problema de
representação das autarquias locais pelo Ministério Público, vide Leonor do Rosário Mesquita Furtado, A
intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo, in Maria João Antunes, Estudos em
memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp.
769-780 e Cláudia Alexandra dos Santos
Silva (2016, abril), O Ministério Público no atual contencioso
administrativo português, e-Pública, Vol. 3, n.º 1, Lisboa,
disponível em:
https://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-184X2016000100010&lng=es&nrm=iso
.
[39] Cfr. C. A. Santos Silva, O Ministério Público no atual
contencioso administrativo português, cit. quando a Autora diz que “é exatamente
nas situações em que a atuação administrativa é ilegal ou de duvidosa
legalidade que o Ministério Público se encontra numa encruzilhada entre a
prossecução do interesse público e a defesa da legalidade democrática”.
[40] Cfr. Sérvulo Correia, A reforma do contencioso administrativo cit.,
p. 317, onde o Autor propõe esta solução, mas sublinha que esta possibilidade
concedida pelo n.º 1 do artigo 93 do EMP (antigo n.º 1 do artigo 69.º) se trata
de “um remédio reservado a casos extremos”.
[41] C.
A. Santos Silva, O Ministério Público no atual contencioso
administrativo português, cit.
[42] Idem.
[43] Idem.
[44] Alexandra
Leitão (2013,
Maio-Ago.), A representação do Estado pelo Ministério
Público nos tribunais administrativos, Julgar, n.º 20, p. 200.
[45] Ibidem.
[46]
Vasco Pereira da Silva
(2019, Dezembro), Revisitando a “reforminha” do Processo Administrativo de
2019 – “Do Útil, do Supérfluo e do Erróneo”, e-Pública, Vol. 6, n.º 3,
Lisboa, p. 12, disponível em: file:///C:/Users/Sofia/Downloads/34316-revisitando-a-reforminha-do-processo-administrativo-de-2019-do-util-do-superfluo-e-do-erroneo.pdf
.
[47] Ibidem.
[48] Ibidem.
[49] Ibidem.
[50] Ibidem.
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