Responsabilidade Civil da Administração Pública
No começo, relativamente à matéria de responsabilidade
civil da Administração Pública, até a reforma do Contencioso Administrativo
encontraríamos uma bifurcação de soluções: se os danos foram causados no
desempenho de atividades de gestão privada então a Administração responde
segundo o Direito civil perante os tribunais judicias e se os danos foram
causados no exercício de atividades de gestão pública então a Administração
responde segundo o Direito Administrativo perante os tribunais administrativos,
tal como refere o Professor Freitas do Amaral sobre esta questão. Esta
dualidade remonta para uma “fragmentação” de soluções jurídicas não estando nem
perto de satisfazer as garantias dos cidadãos e consiste numa solução sem
logica, pois, funda-se na distinção entre gestão publica e privada.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, esta distinção
não tem nenhuma razão de existência uma vez que o seu pressuposto assenta numa ideia
autoritária de Administração que exercia poderes de autoridade e como
consequência corresponde a ideia de que o Direito Administrativo é apenas um
conjunto de normas “excecionais” do Direito Civil.
Além
disso, é impossível distinguir atuações informais e técnicas e operações
materiais da Administração. Aliás, estas operações são os factos que
frequentemente originam a responsabilidade civil e utilizar a distinção de
gestão publica e privada é ineficaz. Isto é. Por exemplo, a atuação de um
médico não é diferente quanto a sua natureza se for realizado no setor publico
ou privado.
Atualmente, não é utilizada a regra formal do exercício
do poder, mas sim a ideia material da função administrativa para unir a
totalidade das atuações administrativas. Logo, o nosso tempo e esforço devia
ser usado para uniformizar o regime jurídico, visto que a satisfação de
necessidades coletivas através de entidades publicas e privas é o elemento
comum e presente em todas as atuações administrativas.
A maior prova da futilidade de distinção entre o tipo de
gestão encontra-se na jurisprudência que renunciou ao critério lógico de
distinção e passou a utilizar o critério da “lógica de sensação da arte”, ou
seja, a procurar referências ao “ambiente”, isto é direito público. A realidade
de que os tribunais judicias e administrativos se consideravam incompetentes
para decidir casos de gestão pública e privada moldando este “injusto” sistema
que vigorou até 2004. Para entender o motivo da utilização do termo “injusto”
iremos ao lugar onde tudo começou.
O
problema tem origem num caso real que ocorreu na França e tem como personagem
principal uma menina de cinco anos e como vilão a empresa pública de tabaco de
Bordéus. A trágica história consiste no atropelamento da menina por um vagão
desta empresa e de uma indemnização que não chegou até as mãos dos pais com o
fundamento de incompetência do tribunal de Bordéus e ser inexistente uma lei
aplicável ao caso.
Contudo, mesmo quando os pais se dirigiram ao Conselho de
Estado ouviram as mesmas palavras de incompetência e da ausência de lei
aplicável. Devido a este conflito foi chamado o Tribunal de Conflitos que
declarou o caso dentro da competência da Justiça Administrativa e perante a
ausência de lei deve-se criar normas com o objetivo de proteger a Administração
e de responsabilizar esta entidade na matéria de responsabilidade civil.
Consequentemente, devido a ausência de critérios lógicos
que permitissem agrupar situações no âmbito da gestão pública e privada,
respetivamente, as dúvidas quanto ao direito aplicável eram frequentes e
provocavam conflitos de jurisdições e problemas quanto a (falta de) celeridade
do tempo de resposta e até casos inaceitáveis de lesão do direito fundamental à
proteção dos particulares. Assim, chegamos à Reforma do Contencioso e com ele
presenciamos uma nova história com a consagração da unidade jurisdicional na
responsabilidade civil da Administração Pública com efeitos no direito
substantivo. Contudo, esta história é nada mais do que um “remake”, uma vez que
o material usado como fonte é o mesmo sendo mantida a dualidade legislativa.
Os tribunais administrativos e fiscais são competentes em
razão da natureza das relações jurídicas em causa nos termos do artigo 212.º,
n.º 3 da CRP e 1.º, n.º 1 do ETAF, integrando (ou não) o caso concreto numa das
alíneas dessa cláusula geral e aberta, não sendo a lista taxativa, mas
exemplificativa.
Quanto à responsabilidade civil pública em concreto são
relevantes as alíneas g), h) e i) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF. A partir da análise
destas alíneas concluímos que estamos perante um regime de unidade
jurisdicional não só no contencioso da responsabilidade civil extracontratual
da Administração Pública, mas também no contencioso de “toda a responsabilidade
civil pública” que entra na gaveta de competências dos tribunais
administrativos. Portanto, verifica-se o abandono do critério da “falsa
distinção” entre gestão pública e privada que discutimos anteriormente passando
esta unificação do regime a uma resposta correta para o problema da
responsabilidade na ótica do Professor Vasco Pereira Silva.
Passaremos agora a um breve estudo das alienas para
entendermos como o ordenamento jurídico português enquadra e resolve estes
casos. Em primeiro lugar, a alínea g), consagra a uniformização jurisdicional
da globalidade do contencioso da responsabilidade civil publica. Portanto,
verificamos um alargamento da cláusula geral da natureza administrativa, sendo
qualificada como administrativa qualquer relação de responsabilidade civil
pública. Além disso, através desta norma define-se a competência da jurisdição
administrativa para apreciar qualquer questão de responsabilidade civil
extracontratual da Administração Pública. Para este efeito é completamente
irrelevante saber se estamos perante atuação de gestão pública ou privada, pois
a jurisdição administrativa passa a ser competente em todos os casos. Porém, o
Professor Vieira de Andrade tem uma visão ligeiramente diferente, entende que,
de facto, os tribunais administrativos são competentes para julgar litígios
concernes da atuação de entidades publicas através de atos de gestão privada. Contudo,
no final será a jurisprudência a avaliar a dimensão da ampliação do regime
substantivo, ao passo que a diferenciação da atuação persiste e a definição tem
atuação privada ou pública pressupõe consequências distintas.
De seguida aliena h), complementa a alínea anterior
atribuindo competência aos tribunais administrativos nos casos de
“responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários,
agentes e demais servidores públicos”.
Por fim a aliena i), permite englobar por um lado, situações
de exercício da função administrativa através de cooperação de entidades privadas
com a Administração pública e por outro, as atuações que revistam forma privada
da Administração pública. Esta alínea suscita uma dúvida quanto a sua
aplicabilidade imediata. Verificando-se uma divergência doutrinária, os dos
Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral apontam que o
artigo 4.º, n.º 1 do ETAF não tem alcance prático e, por isso, os tribunais
administrativos não serão competentes para apreciar a responsabilidade de
entidades privadas, visto que não existe fundamento em nenhuma disposição de
direito substantivo.
Na
oposição, os Professores Vieira de Andrade e Vasco Pereira da Silva defendem
que, pelo menos, nos casos de “responsabilidade por exercício de poderes
públicos por concessionários (…) e por entes privados de mão pública (…)” o
regime substantivo de direito público deve ser aplicado por presunção em conformidade
com a alínea d). Por sua vez,
Passando para o “novo” regime de responsabilidade civil
pública, falaremos agora da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro aplicável, nos
termos do artigo 1.º, n.º 1, aos “danos resultantes do exercício da função
legislativa, jurisdicional e administrativa” em concordância entre a
uniformização jurisdicional e o regime substantivo da responsabilidade civil. Este
regime surge para um aperto à unificação jurisdicional e dar um fim à “ilógica”
distinção entre gestão pública e privada, porém no artigo 1.º n.º 2 deparamo-nos
com incerteza na interpretação da norma, devido à “ambiguidade do legislador”
na utilização da expressão “prerrogativas de poder público”. Estas palavras, utilizando a expressão do
Professor Vasco Pereira da Silva, “ressuscitam” a distinção que tínhamos dado
como ultrapassada. Na perspetiva deste Professor, a norma coloca um fim a
dualidade, devendo ser interpretada como uma norma unificadora do regime
jurídico da função administrativa quanto à responsabilidade na sua totalidade. Alguns
dos argumentos desta posição são a utilização da dita expressão como se fosse
uma alternativa dando a entender que o regime é aplicável nas duas
possibilidades de atuação ou omissão. Além disso, o legislador tinha a intenção
de unificar o regime da responsabilidade, como podemos ver no artigo 1.º n.º 3 e
4, sendo irrelevante a natureza da atividade ou o sujeito. O terceiro argumento
utiliza o artigo 2.º n.º 5 do CPA, visto que a expressão “normas ou princípios
de direito administrativo” abrange as atuações de gestão privada na medida em
que princípios são aplicáveis a “toda e qualquer atuação da Administração
Pública”.
O
CPTA, no âmbito da responsabilidade civil pública, cria dois meios processuais
sendo estes a ação administrativa comum prevista no 37.º e seguintes e a ação
administrativa especial que se encontra no artigo 46.º e seguintes. Estas duas
modalidades são consideradas modalidades de ação “guarda-chuva” ou “ação
quadro” onde são integradas várias “subações” consoante o pedido. Seguindo a
lógica do diploma, em princípio, enquadramos as situações de responsabilidade
civil pública na ação administrativa comum. Caso haja cumulação de pedidos a
ação adequada é a ação administrativa especial for força do artigo 5.º, n.º 1.
Começaremos
pelo artigo 37.º - esta norma fornece uma enumeração, a título meramente
exemplificativo, dos pedidos que podem ser tutelados pela ação administrativa
comum. Por usa vez, surge o artigo 38.º do CPTA que corta o “clássico
entendimento do caso decidido” dos atos administrativos considerados como uma
realidade substantiva ao consagrar a separação do dever de indenizar do ónus de
impugnar o ato. Isto é, esta norma é significativa para a autonomização do
pedido de indemnização que resolve uma “vexata questio” no ordenamento
jurídico português considerada, aliás inconstitucional pelo Professor Vasco
Pereira da Silva. Isto é, o direito à indemnização é um direito tão fundamental
como o direito de impugnação contenciosa, logo ao interpretar o artigo 7.º do
DL n.º 48 051 de 21 de novembro de 1967, é “manifestamente
inconstitucional” entender que o dever de indemnização apenas existia se
houvesse interposição de recurso contencioso de anulação do ato administrativo
pelo particular.
Assim
sendo, esta solução pode ser encontrada no artigo 6.° da Lei n.° 67/ 2007, de
31 de dezembro, segundo o qual “quando o comportamento culposo do lesado tenha
concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados (…) cabe ao
tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e as
consequências que delas tiverem resultado, se a indemnização deve ser
totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”,
Passando
para a ação administrativa especial, esta é utilizada nos casos de cumulação de
pedidos relativos a um ato ou regulamento administrativo com o pedido de
indemnização no âmbito da responsabilidade civil publica. Esta ação especial é
considerada uma novidade que o Professor Vasco Pereira da Silva designa como
“processo dois em um”, sendo uma inovação introduzida com a reforma do
Contencioso Administrativo. O motivo para tal denominação deve-se ao facto de
ser possível tratar num só juízo a apreciação da relação jurídica estabelecida
entre as partes no seu todo e não dividida em vários meios processuais.
Finalmente, podemos concluir que o diploma de 31 de dezembro apesar de não ser perfeito, permite colocar a distinção entre gestão pública e privada na gaveta do passado esperando nunca mais ser aberta. Quanto a matéria de responsabilidade o próprio ETAF é amplo na atribuição de competência aos tribunais administrativos, tal como vimos nas três alíneas mencionadas, em comparação à cláusula geral presente no artigo 212.º, n.º 3 da CRP.
Bibliografia:
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CADILHA, Carlos; O novo
regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo
exercício da função administrativa.
CANELAS, Maria Helena
Barbosa Ferreira; A Amplitude da Competência Material dos Tribunais
Administrativos em sede de Acções Relativas a responsabilidade Civil
Contratual; JULGAR N.º 15; Coimbra Editora; Coimbra; 2011.
BARRAS, Tiago Viana; A
Responsabilidade Civil Administrativa do Estado.
Ana Isabel Shubravska Hladyshko
N.º 66384
Subtuma 6
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