Sunday, November 24, 2024

Responsabilidade Civil da Administração Pública

 Responsabilidade Civil da Administração Pública


            No começo, relativamente à matéria de responsabilidade civil da Administração Pública, até a reforma do Contencioso Administrativo encontraríamos uma bifurcação de soluções: se os danos foram causados no desempenho de atividades de gestão privada então a Administração responde segundo o Direito civil perante os tribunais judicias e se os danos foram causados no exercício de atividades de gestão pública então a Administração responde segundo o Direito Administrativo perante os tribunais administrativos, tal como refere o Professor Freitas do Amaral sobre esta questão. Esta dualidade remonta para uma “fragmentação” de soluções jurídicas não estando nem perto de satisfazer as garantias dos cidadãos e consiste numa solução sem logica, pois, funda-se na distinção entre gestão publica e privada.

            Para o Professor Vasco Pereira da Silva, esta distinção não tem nenhuma razão de existência uma vez que o seu pressuposto assenta numa ideia autoritária de Administração que exercia poderes de autoridade e como consequência corresponde a ideia de que o Direito Administrativo é apenas um conjunto de normas “excecionais” do Direito Civil.

Além disso, é impossível distinguir atuações informais e técnicas e operações materiais da Administração. Aliás, estas operações são os factos que frequentemente originam a responsabilidade civil e utilizar a distinção de gestão publica e privada é ineficaz. Isto é. Por exemplo, a atuação de um médico não é diferente quanto a sua natureza se for realizado no setor publico ou privado.

            Atualmente, não é utilizada a regra formal do exercício do poder, mas sim a ideia material da função administrativa para unir a totalidade das atuações administrativas. Logo, o nosso tempo e esforço devia ser usado para uniformizar o regime jurídico, visto que a satisfação de necessidades coletivas através de entidades publicas e privas é o elemento comum e presente em todas as atuações administrativas.

            A maior prova da futilidade de distinção entre o tipo de gestão encontra-se na jurisprudência que renunciou ao critério lógico de distinção e passou a utilizar o critério da “lógica de sensação da arte”, ou seja, a procurar referências ao “ambiente”, isto é direito público. A realidade de que os tribunais judicias e administrativos se consideravam incompetentes para decidir casos de gestão pública e privada moldando este “injusto” sistema que vigorou até 2004. Para entender o motivo da utilização do termo “injusto” iremos ao lugar onde tudo começou.

O problema tem origem num caso real que ocorreu na França e tem como personagem principal uma menina de cinco anos e como vilão a empresa pública de tabaco de Bordéus. A trágica história consiste no atropelamento da menina por um vagão desta empresa e de uma indemnização que não chegou até as mãos dos pais com o fundamento de incompetência do tribunal de Bordéus e ser inexistente uma lei aplicável ao caso.

            Contudo, mesmo quando os pais se dirigiram ao Conselho de Estado ouviram as mesmas palavras de incompetência e da ausência de lei aplicável. Devido a este conflito foi chamado o Tribunal de Conflitos que declarou o caso dentro da competência da Justiça Administrativa e perante a ausência de lei deve-se criar normas com o objetivo de proteger a Administração e de responsabilizar esta entidade na matéria de responsabilidade civil.

            Consequentemente, devido a ausência de critérios lógicos que permitissem agrupar situações no âmbito da gestão pública e privada, respetivamente, as dúvidas quanto ao direito aplicável eram frequentes e provocavam conflitos de jurisdições e problemas quanto a (falta de) celeridade do tempo de resposta e até casos inaceitáveis de lesão do direito fundamental à proteção dos particulares. Assim, chegamos à Reforma do Contencioso e com ele presenciamos uma nova história com a consagração da unidade jurisdicional na responsabilidade civil da Administração Pública com efeitos no direito substantivo. Contudo, esta história é nada mais do que um “remake”, uma vez que o material usado como fonte é o mesmo sendo mantida a dualidade legislativa.

            Os tribunais administrativos e fiscais são competentes em razão da natureza das relações jurídicas em causa nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da CRP e 1.º, n.º 1 do ETAF, integrando (ou não) o caso concreto numa das alíneas dessa cláusula geral e aberta, não sendo a lista taxativa, mas exemplificativa.

            Quanto à responsabilidade civil pública em concreto são relevantes as alíneas g), h) e i) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF. A partir da análise destas alíneas concluímos que estamos perante um regime de unidade jurisdicional não só no contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, mas também no contencioso de “toda a responsabilidade civil pública” que entra na gaveta de competências dos tribunais administrativos. Portanto, verifica-se o abandono do critério da “falsa distinção” entre gestão pública e privada que discutimos anteriormente passando esta unificação do regime a uma resposta correta para o problema da responsabilidade na ótica do Professor Vasco Pereira Silva.

            Passaremos agora a um breve estudo das alienas para entendermos como o ordenamento jurídico português enquadra e resolve estes casos. Em primeiro lugar, a alínea g), consagra a uniformização jurisdicional da globalidade do contencioso da responsabilidade civil publica. Portanto, verificamos um alargamento da cláusula geral da natureza administrativa, sendo qualificada como administrativa qualquer relação de responsabilidade civil pública. Além disso, através desta norma define-se a competência da jurisdição administrativa para apreciar qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública. Para este efeito é completamente irrelevante saber se estamos perante atuação de gestão pública ou privada, pois a jurisdição administrativa passa a ser competente em todos os casos. Porém, o Professor Vieira de Andrade tem uma visão ligeiramente diferente, entende que, de facto, os tribunais administrativos são competentes para julgar litígios concernes da atuação de entidades publicas através de atos de gestão privada. Contudo, no final será a jurisprudência a avaliar a dimensão da ampliação do regime substantivo, ao passo que a diferenciação da atuação persiste e a definição tem atuação privada ou pública pressupõe consequências distintas.

            De seguida aliena h), complementa a alínea anterior atribuindo competência aos tribunais administrativos nos casos de “responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.

            Por fim a aliena i), permite englobar por um lado, situações de exercício da função administrativa através de cooperação de entidades privadas com a Administração pública e por outro, as atuações que revistam forma privada da Administração pública. Esta alínea suscita uma dúvida quanto a sua aplicabilidade imediata. Verificando-se uma divergência doutrinária, os dos Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral apontam que o artigo 4.º, n.º 1 do ETAF não tem alcance prático e, por isso, os tribunais administrativos não serão competentes para apreciar a responsabilidade de entidades privadas, visto que não existe fundamento em nenhuma disposição de direito substantivo.

            Na oposição, os Professores Vieira de Andrade e Vasco Pereira da Silva defendem que, pelo menos, nos casos de “responsabilidade por exercício de poderes públicos por concessionários (…) e por entes privados de mão pública (…)” o regime substantivo de direito público deve ser aplicado por presunção em conformidade com a alínea d). Por sua vez,

            Passando para o “novo” regime de responsabilidade civil pública, falaremos agora da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro aplicável, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, aos “danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa” em concordância entre a uniformização jurisdicional e o regime substantivo da responsabilidade civil. Este regime surge para um aperto à unificação jurisdicional e dar um fim à “ilógica” distinção entre gestão pública e privada, porém no artigo 1.º n.º 2 deparamo-nos com incerteza na interpretação da norma, devido à “ambiguidade do legislador” na utilização da expressão “prerrogativas de poder público”.  Estas palavras, utilizando a expressão do Professor Vasco Pereira da Silva, “ressuscitam” a distinção que tínhamos dado como ultrapassada. Na perspetiva deste Professor, a norma coloca um fim a dualidade, devendo ser interpretada como uma norma unificadora do regime jurídico da função administrativa quanto à responsabilidade na sua totalidade. Alguns dos argumentos desta posição são a utilização da dita expressão como se fosse uma alternativa dando a entender que o regime é aplicável nas duas possibilidades de atuação ou omissão. Além disso, o legislador tinha a intenção de unificar o regime da responsabilidade, como podemos ver no artigo 1.º n.º 3 e 4, sendo irrelevante a natureza da atividade ou o sujeito. O terceiro argumento utiliza o artigo 2.º n.º 5 do CPA, visto que a expressão “normas ou princípios de direito administrativo” abrange as atuações de gestão privada na medida em que princípios são aplicáveis a “toda e qualquer atuação da Administração Pública”.

O CPTA, no âmbito da responsabilidade civil pública, cria dois meios processuais sendo estes a ação administrativa comum prevista no 37.º e seguintes e a ação administrativa especial que se encontra no artigo 46.º e seguintes. Estas duas modalidades são consideradas modalidades de ação “guarda-chuva” ou “ação quadro” onde são integradas várias “subações” consoante o pedido. Seguindo a lógica do diploma, em princípio, enquadramos as situações de responsabilidade civil pública na ação administrativa comum. Caso haja cumulação de pedidos a ação adequada é a ação administrativa especial for força do artigo 5.º, n.º 1.

Começaremos pelo artigo 37.º - esta norma fornece uma enumeração, a título meramente exemplificativo, dos pedidos que podem ser tutelados pela ação administrativa comum. Por usa vez, surge o artigo 38.º do CPTA que corta o “clássico entendimento do caso decidido” dos atos administrativos considerados como uma realidade substantiva ao consagrar a separação do dever de indenizar do ónus de impugnar o ato. Isto é, esta norma é significativa para a autonomização do pedido de indemnização que resolve uma “vexata questio” no ordenamento jurídico português considerada, aliás inconstitucional pelo Professor Vasco Pereira da Silva. Isto é, o direito à indemnização é um direito tão fundamental como o direito de impugnação contenciosa, logo ao interpretar o artigo 7.º do DL n.º 48 051 de 21 de novembro de 1967, é “manifestamente inconstitucional” entender que o dever de indemnização apenas existia se houvesse interposição de recurso contencioso de anulação do ato administrativo pelo particular.

Assim sendo, esta solução pode ser encontrada no artigo 6.° da Lei n.° 67/ 2007, de 31 de dezembro, segundo o qual “quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados (…) cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas tiverem resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”,

Passando para a ação administrativa especial, esta é utilizada nos casos de cumulação de pedidos relativos a um ato ou regulamento administrativo com o pedido de indemnização no âmbito da responsabilidade civil publica. Esta ação especial é considerada uma novidade que o Professor Vasco Pereira da Silva designa como “processo dois em um”, sendo uma inovação introduzida com a reforma do Contencioso Administrativo. O motivo para tal denominação deve-se ao facto de ser possível tratar num só juízo a apreciação da relação jurídica estabelecida entre as partes no seu todo e não dividida em vários meios processuais.

            Finalmente, podemos concluir que o diploma de 31 de dezembro apesar de não ser perfeito, permite colocar a distinção entre gestão pública e privada na gaveta do passado esperando nunca mais ser aberta. Quanto a matéria de responsabilidade o próprio ETAF é amplo na atribuição de competência aos tribunais administrativos, tal como vimos nas três alíneas mencionadas, em comparação à cláusula geral presente no artigo 212.º, n.º 3 da CRP.

 

 

Bibliografia:

SILVA, Vasco Pereira da; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise, Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, 2.ª Edição; Edições Almedina; Coimbra; 2013, pp. 518-558.

CADILHA, Carlos; O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa.

CANELAS, Maria Helena Barbosa Ferreira; A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a responsabilidade Civil Contratual; JULGAR N.º 15; Coimbra Editora; Coimbra; 2011.

BARRAS, Tiago Viana; A Responsabilidade Civil Administrativa do Estado.



Ana Isabel Shubravska Hladyshko

N.º 66384

Subtuma 6

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