Âmbito da Jurisdição Administrativa
Introdução:
Em primeiro lugar, vamos entender o que o termo
jurisdição significa. Segundo o Professor Castro Mendes, a jurisdição consiste
na função do Estado realizada “pelos tribunais mediante o exercício do poder
decisório de declarar o direito e de o impor coercivamente para fins de
composição de litígios de pretensão insatisfeita”. Esta jurisdição passa a
“administrativa” se a pretensão nascer a partir de uma relação jurídica
administrativa.
Esta jurisdição administrativa é limitada dado ao
apertado número tribunais, meios de acesso e dos poderes dos juízes. Na longa
história deste tema, a criação de uma jurisdição própria para resolver litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas ainda é uma novidade deste
século.
Âmbito da jurisdição administrativa:
Em
1976, o Estado democrático e social nasce tendo como pilar a dignidade da
pessoa humana e nesse mesmo ano, a Constituição portuguesa, pela primeira
vez, integrou os tribunais administrativos no poder judicial e concedeu o
direito de acesso à justiça que correspondia ao direito ao recurso. Por outras
palavras, a Constituição consagrou um modelo de Justiça Administrativa
“plenamente jurisdicionalizado”, ou seja, os tribunais
administrativos passam a ser autónomos dentro do poder judicial.
Surge, consequentemente, uma maior preocupação com os valores fundamentais do homem e o Estado passa a ter a tarefa de satisfazer a soberania popular. Daqui conclui-se que a ação administrativa deve obedecer à Constituição, à lei e aos princípios gerais de direito, devendo o Estado respeitar a respetiva separação de poderes. Inclusivamente, na versão originária da Constituição os tribunais administrativos são considerados “órgãos de soberania” para impor um Estado de Direito de Justiça em substituição do Estado de Legalidade.
Contudo,
a jurisdição plena, em termos “substanciais, processuais e organizativos” surge
com a revisão constitucional de 1989, uma condição necessária para solucionar a
realidade grave de Portugal marcada pela divergência entre a verdadeira realidade
e a realidade constitucional. Isto é, o povo português vivia num “défice de
constitucionalização”, uma vez que no texto, o modelo
constitucional de Justiça Administrativa, estava perfeitamente organizado,
enquanto que na realidade havia uma visível falta de correspondência na lei e
jurisprudência, não havendo verificação de quase qualquer passo para o caminho
da plena jurisdição.
Continuando, a reforma que entrou em vigor em 2004 já resolveu o problema da divergência e concretizou o modelo de Justiça Administrativa da lei fundamental. Ao consagrar um modelo equilibrado e lógico de normas processuais, a proteção plena e efetiva dos direitos dos particulares encontra-se muito mais eficazmente assegurada ao contrário dos modelos anteriores. Esta reforma foi aprofundada em 2015 com o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, que tem como objetivo «fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos».
As
duas alterações mais significativas que devemos destacar neste diploma são a atribuição
de competência aos tribunais administrativos para julgar litígios envolvendo
pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no
exercício do poder administrativo mesmo que seja ilegítimo e a aplicação de
coimas no caso de ilícito de mera ordenação social por violação de normas de
direito administrativo enquadradas na matéria de urbanismo às impugnações
judicias de decisões da Administração Pública.
Seguidamente,
a interpretação do artigo 212.º, n.º 3 da CRP cria uma dúvida nos aplicadores
de Direito - se nesta norma está consagrada uma reserva material absoluta de
jurisdição, ou seja, os tribunais administrativos são os únicos que podem
julgar questões de direito administrativo e/ou se apenas podem julgar estas
questões.
Quanto à parte do “apenas podem julgar”, a jurisprudência
refere uma “reserva negativa” ou de exclusão atribuída aos tribunais não
judiciais. Assim, os tribunais judiciais seriam os “tribunais comuns”
competentes para dirigir litígios de todas as áreas que não estavam atribuídas
a outras ordens nos termos do artigo 211.º, n.º 1 da CRP. Por outro lado,
haveria os “tribunais especiais” que estão limitados a julgar questões que
estão constitucionalmente previstas.
Seguindo esta ideia, todas as leis que conferem
competências para os tribunais administrativos para o “conhecimento de
questões” que não tenham na base relações administrativas são
inconstitucionais. O Acórdão do STA de 10 de maio de 1994 ilustra esta ideia
claramente ao desaplicar uma norma do Regulamento do Serviço do Registo de
Imprensa que atribuía competência aos tribunais administrativos tendo como
fundamento a inconstitucionalidade e violação do 214º, n.º 3 que corresponde ao
artigo 212.º de hoje.
Contudo, a doutrina diverge desta ideia, há um crescimento
do entendimento que admite a atribuição legal para a resolução de litígios que
abrange elementos de direito privado aos tribunais administrativos. Usando o
exemplo do Professor Vieira de Andrade, neste capítulo da história torna-se
possível para a jurisdição administrativa “julgar ações sobre contratos
privados da Administração, ou (…) ações de responsabilidade civil extracontratual
por actos de gestão privada da Administração”.
Quanto
à questão “são os únicos que podem julgar questões de direito administrativo”
existe uma acesa discussão na doutrina. Parte das opiniões assenta na tese de
que da CRP extrai-se uma reserva, não podendo o legislador atribuir esta
competência a qualquer outro tribunal. Nesta tese, só são consideradas válidas
as devoluções de competências em matéria administrativa para outros tribunais
previstos “ao nível constitucional ou no caso de estado de necessidade”.
O
Professor Mário Esteves de Oliveira pronunciou-se neste sentido, de que existe
uma reserva absoluta dos tribunais administrativos, porém admite uma exceção.
Utilizando o elemento “sinépico”, ou experimental de interpretação para
sustentar o seu argumento, afirma que apenas nas situações em que seja
impossível o cumprimento da reserva ou nos casos em que a realidade obrigue a
necessidade de desaplicar a norma constitucional é legitimo atribuir a outros
tribunais o conhecimento de litígios administrativos.
Seguidamente,
foi proposta uma posição mitigada que admite, nos casos sobre direitos
fundamentais dos cidadãos, por exemplo, a remissão do legislador para a
“jurisdição comum”. Isto deve-se ao facto de, como já vimos no segundo
paragrafo, a jurisdição administrativa ser limitada havendo não só falta de
meios como de número insuficiente de tribunais para responder de forma eficaz
aos problemas emergentes das relações jurídicas administrativas e assegurar uma
tutela judicial efetiva.
O
Professor Freitas do Amaral aparenta aderir a esta posição, desde o início,
devido a dois fatores: das visíveis deficiências estruturais e substanciais da
justiça administrativa e das dificuldades transitórias da organização
judiciaria administrativa.
Por sua vez, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República distinguiu o contencioso por natureza, que corresponde ao recurso contra atos administrativos, sendo este recurso exclusivo dos tribunais administrativos, e o contencioso por atribuição ou acidental que pode ser conferido aos tribunais comuns pois estas matérias enquadram-se no tema das garantias dos particulares contra a Administração.
É de referir que esta distinção se encontra totalmente superada, dando lugar a uma interpretação mais correta criada pelo Tribunal de Conflitos e pelo TC que consiste no preceito constitucional ser considerado uma regra que define um “modelo típico” flexível para abarcar casos especiais desde que o núcleo caracterizador do modelo não fique desfigurado. Logo, não será tido como uma proibição absoluta e inquestionável, como um imperativo estrito.
Esta norma constitui uma cláusula geral cuja extensão não vem delimitada, contudo isso não significa que se estabelece uma reserva material absoluta. A definição deve ser entendida como uma “garantia institucional” através da qual cabe ao legislador ordinário apenas a obrigação de respeitar o “núcleo essencial da organização material das jurisdições”. Isto é, a única proibição que se extrai é de descaracterizar a jurisdição administrativa, uma jurisdição que é a personagem principal nesta matéria podendo passar o papel de julgar a outros tribunais.
Estas “remissões orgânicas” devem ser incluídas na margem de escolha política e da consequente, “liberdade constitutiva própria do poder legislativo”, uma vez que, poderão surgir casos cinzentos que suscitam dúvidas de qualificação ou uma mistura de matérias.
Posteriormente, foi aprovado o ETAF pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro e logo no primeiro artigo reafirma a cláusula geral que já vimos na Constituição e, depois, ao longo do artigo 4.º procede a enumeração dos litígios incluídos e excluídos, ou seja, uma enumeração positiva e negativa do âmbito da jurisdição que iremos analisar mais detalhadamente logo a seguir.
Apesar da existência destes artigos, as dúvidas persistem,
pois, as enumerações são meramente exemplificativas, não só porque é impossível
prever litígios possíveis como também os conceitos utilizados prejudicam a
nossa compreensão sendo pouco precisos.
É certo que os sintomas de “dualidade esquizofrénica”
marcaram a infância e toda a vida da contratação administrativa. O artigo 212º
número 3 surge e marca o início para um “novo começo” para a história
da contratação da publica ultrapassando a dualidades substantivas.
Como já vimos, o ETAF no artigo 4º consagra em termos
amplos a competência dos tribunais administrativos e fiscais para julgar todas
as situações jurídicas correspondentes ao exercício da função administrativa.
Assim, adota-se como critério de delimitação a relação jurídica o que
possibilita “fazer a ponte” entre o direito substantivo e o processual.
Segundo
o Professor Vasco Pereira da Silva esta relação jurídica administrativa
aparenta ser o melhor instituto que abarca todas as relações todas as possíveis
relações ou “ligações”, visto que abrange não só as ligações dos privados com
as autoridades administrativas como também as ligações que estas autoridades
estabelecem entre si. Como esta relação jurídica usa a Constituição como fonte
do fundamento para a sua aplicabilidade e radica na “tomada de posição
fundamental do Estado de Direito”, nos termos da qual o Estado e o cidadão
possuem uma relação jurídica, é considerado um critério adequado, por afastar a
antiga conceção de poder do Estado perante o cidadão.
Por conseguinte, o legislador tomou a decisão
correta em afastar a matriz positivista introduzidas por Jellinek e Mayer, por
exemplo, e tornar a “relação de poder” uma memória do passado que é reduzida a
uma “mera denominação desprovida de conteúdo”. Isto significa que a natureza administrativa
da relação jurídica pode decorrer da natureza dos sujeitos ou do exercício de
poderes de autoridade que consistem nas tradicionais características formais,
mas também pode resultar, por exemplo, da natureza dos direitos e deveres que
são características materiais.
O ETAF prossegue a sua exemplificação dos elementos de
conexão que podem ser agrupados em: sujeitos nas alíneas b), c), g), j), l) e
m); dos poderes de autoridade nas alíneas d) e f); das formas de atuação
administrativa nas alíneas a), b), d), e) e f); da natureza das posições
jurídicas em questão nas alíneas a), d), f), h) e l); do fim prosseguido nas
alíneas g), h), i), j) e l) e. por fim, da função desempenhada presente nas
alíneas c), g), i), l), m) e n).
Esta divisão técnica adotada pelo legislador é criticada,
porque não é estabelecido nenhum critério lógico capaz de abranger o universo
referido na sua totalidade. O que temos é esta divisão por categorias da qual
não extraímos uma regra, mas várias revelando uma espécie de “coleção de
critérios parcelares”.
A verdade é que cada alínea não esta nem perto de esgotar
todas as possibilidades que a letra da lei regula e até a conjugação de todas
não serve para integrar todo o “universo” lógico uma vez que não há um critério
a ser utilizado e nenhum deles é levado “até as últimas consequências”.
O Professor Vasco Pereira da Silva compara as alíneas
deste artigo a uma pintura impressionista, pois se analisarmos estes dois
“quadros”, no fundo, estamos a olhar para uma combinação de diferentes
elementos que são detalhados, mas que no seu todo não apresentam nenhuma
lógica. A consequência desta obra do legislador é a criação de constantes
“concursos reais e aparentes” de critérios e de normas de qualificação o que
abriu a porta para casos em que é possível utilizar várias alíneas
simultaneamente.
Apesar disso, não devemos esquecer de que esta enumeração
é meramente exemplificativa e segue o critério previsto na cláusula geral de
qualificação que restringe o âmbito da jurisdição administrativa em razão da
natureza da relação jurídica em litígio nos termos do artigo 1.º número 1 do
ETAF. Em segundo lugar, estes critérios consagram uma noção ampla de relação
jurídica administrativa, logo é suscetível de abranger todos os litígios
provenientes da atuação da função administrativa, ou seja, na prossecução de
fins públicos independente da natureza das entidades.
Se conseguimos resolver o problema do âmbito da
jurisdição, existe algo que continua a pesar na consciência. Ao longo do tempo,
assistimos a uma mudança do contencioso desde breves alterações às mudanças
radicais. No entanto, vários problemas persistem até aos dias de hoje,
nomeadamente, o elevado volume de serviço e processos pendentes.
Tal
como refere Carlos Luís Medeiros de Carvalho, é necessário a atualização e
adoção de quadros adequados e de um quadro complementar, que o CSTAF seja
devidamente materializado e colocado em ação quanto ao enquadramento legal e
com meios e estruturas imprescindíveis para o exercício de qualquer juiz. A
especialização dos tribunais, por sua vez, deve ser aprofundada e os juízes
merecem ter um efetivo apoio e consultoria técnica qualificada.
Esta
preocupação ganha relevância devido ao próprio desenvolvimento da jurisdição
dos tribunais administrativos que devem defender a juridicidade do agir
administrativo e proteger os direitos e interesses legítimos de cada cidadão
perante o eventual abuso da Administração.
Passando
para os litígios que se encontram fora da jurisdição administrativa. Em
princípio, excluímos do âmbito da jurisdição administrativa os litígios em
matéria civil e criminal que envolvem, respetivamente, a aplicação de Direito privado e criminal.
Além disso, para cumprir a legalidade financeira da
atividade administrativa também estão excluídos os poderes que a CRP, artigo
214.º, e a Lei n.º 98/97 de 26 de agosto conferem ao Tribunal de Contas quanto
a matéria de controlo jurisdicional. O Tribunal de Contas tem uma margem de
atuação mais abrangente do que os tribunais administrativos, visto que o
controlo da legalidade não se esgota com o controlo da legalidade formal, mas
acaba por ser alargado de modo a cumprir os princípios jurídicos através dos
quais se concretiza a legalidade substancial.
Deste
modo, o Tribunal de Contas, segundo os critérios de economicidade, eficiência e
eficácia, aprecia à boa gestão financeira das decisões que lhe foram
apresentadas. Como não existe nenhum “mecanismo exterior”, o Tribunal de Contas
acaba por ir além do controlo da legalidade chegando até a formulação de juízos
sobre o mérito, conveniência ou oportunidade das decisões.
Encontramos diplomas avulsos com disposições normativas
que derrogam o critério geral admitindo a possibilidade de os tribunais
judiciais dirimirem litígios jurídico administrativos. Alguns exemplos
clássicos e referidos pelo Professor Mário Aroso de Almeida são o da impugnação
de decisões administrativas de aplicação de coimas, o regime da fixação das
indemnizações devidas por expropriações e outros atos impositivos de
sacrifícios e, por fim, ao regime relativo ao tribunal do comércio que atribui
competência para apreciar a impugnação de decisões da Autoridade da Concorrência.
Os números 2 e 3
do artigo 4.º do ETAF apresentam restrições de tipos de litígios que, à partida,
consideraríamos integrados (ou não) na jurisdição administrativa. Enquanto o
número 2 apenas identifica os litígios que estão fora porque não tem natureza
administrativa e alude ao critério do artigo 212º, n.º 3 da CRP. O número 3 apresenta “verdadeiras restrições”, visto que
reduz o âmbito de aplicação de certas alíneas do número 1 e remete para os
tribunais judiciais em certos casos.
O ponto mais debatido, e, de certo modo importante, é a
delimitação feita em relação a função política e legislativa. No artigo 4.º, n.º
3 alínea a) podemos ler que se encontra “excluída do âmbito da jurisdição
administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação
de atos praticados no exercício da função política e legislativa”.
Para entender este problema temos de explorar a sua origem – as funções estaduais. Existe um evidente confronto entre a função administrativa e a função política e legislativa. Os tribunais administrativos fiscalizam a legalidade dos atos provenientes do exercício da função administrativa, contudo está fora do seu alcance a fiscalização da conformidade dos atos provenientes da função política e legislativa. Apesar de não ser concebível impugnar diretamente atos legislativos nos tribunais administrativos, há uma possibilidade disto ser possível, se o ato apesar de ser emanado sob a forma de ato legislativo, inclua decisões materialmente administrativas.
Os atos políticos também não podem ser impugnados e neste
ponto escreve o Professor Afonso Rodrigues Queiró “a legislação ordinária, ao
vedar aos tribunais administrativos a fiscalização da regularidade jurídica dos
“actos de governo”, dos “actos políticos”, (…) editados no exercício do poder
político da competência do Poder Executivo, edita uma norma perfeitamente
supérflua. Não é esta norma que retira aos ditos tribunais uma competência que
eles de outro modo conservariam ou deteriam (…)”.
O
debate sobre o ato político surgiu devido a necessidade de estabelecer uma
fronteira entre um ato administrativo e um ato político, uma vez que este
último se encontrava numa espécie de isenção ou independência perante a
jurisdição administrativa quando os tribunais administrativos começaram a
adquirir configurações de “verdadeiros tribunais”. Como consequência, há uma
escandalosa ideia de que o poder executivo tem a possibilidade de escapar ao
controlo jurisdicional, visto que o controlo destes atos apenas é realizado
politicamente.
Por
outras palavras, o conceito de ato político representa uma espécie de
imunidade, perante o Poder Executivo, do controlo jurisdicional, enquanto o ato
administrativo é sempre impugnável tal como se lê no artigo 268.º, números 4 e
5 da Constituição da República Portuguesa.
Enquanto
conseguimos esclarecer as dúvidas emergentes sobre os atos legislativos graças
ao artigo 112.º da CRP, que fornece uma lista concreta das formas típicas que
este ato pode revestir, não estamos iluminados de todo quanto aos atos
políticos e como este pode ser delimitado.
No
Acórdão do STJ de 6 de abril de 2007 encontramos um sumário das propostas
doutrinais da época quanto a esta questão: “a função política corresponde à
prática de atos que exprimem opções fundamentais sobre a definição e
prossecução dos interesses ou fins sociais da coletividade”. Porém, com está
frase nada se resolveu, pois devido ao sentido amplo, a função política
compreende a função legislativa enquanto expressão do poder político.
A
única dica para solucionar o problema que obtivemos foi de ir analisar a função
política e delimitá-la em sentido estrito relativamente a função legislativa.
Assim, iremos identificar atos que não assumem forma de ato legislativo, mas
“não deixam de estar subtraídos a jurisdição administrativa” devido a sua natureza política.
A doutrina tem tentado desenvolver este tema,
contudo na opinião do Professor Mário Aroso de Almeida a posição mais correta é
a do Professor Afonso Rodrigues Queiró. Para este autor, a atividade estadual
pode ser separada em duas partes. A primeira corresponde ao “exercício de
faculdades soberanas sem qualquer medição em relação à constituição” e a
segunda parte corresponde ao “exercício de faculdades em último termo
conferidas por normas que (…) são o produto do exercício de poderes soberanos”.
Assim sendo, os atos que representam o
exercício de faculdades diretamente conferidas pela constituição são repartidos
por aqueles que são de caráter geral e abstrato e correspondem as leis
materiais ordinárias. Já os atos políticos ou de governo serão os atos de
caráter individual e concreto. Este autor refere ainda que a atividade política
e legislativa estão no mesmo “plano” num sistema constitucional rígido. Logo os
seus respetivos atos estão “à mesma distância” da CRP.
A
este propósito podemos referir o acórdão do STA de 14 de julho de 2022 na qual
ficou determinado que a nomeação do Governador do Banco de Portugal constitui
um ato político, não estando em causa qualquer dimensão de legalidade do ato. Assim
sendo, o Supremo Tribunal Administrativo é incompetente em razão da matéria nos
termos do artigo 4º, n.º 3 do ETAF. No referido artigo e como já vimos
anteriormente, exclui-se o âmbito de jurisdição administrativa quando esta em
causa um ato político, contudo é referido que até os atos políticos podem ter
dimensões de legalidade suscetíveis de controle pelos tribunais.
Para
apurar essa questão, temos de fazer uma distinção, uma vez que uma coisa será o
controle da legalidade de um ato, ainda que este seja político, outra coisa será
o conteúdo do ato político. Por conseguinte. devemos analisar se o caso pode
ser integrado no âmbito de um ato político. Perante uma ausência de indicação
legislativa, recorremos à doutrina e jurisprudência tendo “como ponto de
partida” a exemplificação presente nas alíneas a) a i) do n.º 1 do artigo 197.º
da CRP.
Tendo
como base a doutrina, os atos políticos serão os “atos dos órgãos superiores do
Estado, que visam a definição primária dos seus fins e interesses primaciais, qualificando
como administrativa a atividade secundária tendente a satisfazer necessidades
coletivas previamente definidas no âmbito da atividade política”. Como só os
órgãos superiores têm legitimidade para definir os fins e meios para “atingir
os caminhos legitimados no sufrágio popular” serão apenas estes órgãos capazes
de exercer a função política.
Continuando, no acórdão de 29 de julho de 2020, também do STA, chega-se à conclusão de que a situação em apreço (intervenção do Estado na TAP) não constitui um ato político, no entanto, “tal não significa que não estejamos perante um ato do Governo que, embora de natureza “administrativa”, não revista de uma tal discricionariedade que seja reduzidíssimo o seu cariz vinculado suscetível de controlo judicial”. No final, apesar da decisão de apoiar (ou não) a TAP começar por ser uma decisão política esta acaba por se tornar uma decisão administrativa plena de discricionariedade.
Para terminar, é importante salientar que houve alterações no ETAF para modernizar e racionalizar o sistema de justiça de modo a agilizar e diminuir a morosidade dos procedimentos. Tendo como motivo destas alterações a Lei n.º 114/2019 que consagra, segundo o Professor Ricardo Pedro, efeitos em três domínios: especialização, administração e gestão dos tribunais e a assessoria.
Passando
a questão do âmbito de jurisdição administrativa prevê-se agora na alínea e) do
número 4º o seguinte: “A apreciação de litígios emergentes das relações de
consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a
respetiva cobrança coerciva”. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais no seu
número 1 esclarece o que são estes serviços essenciais no ordenamento jurídico
português.
Têm sido debatidas alterações de modo a ampliar o âmbito da jurisdição administrativa, porém a questão fulcral continua a ser os casos de fronteira e onde os introduzir. O Professor Vieira de Andrade menciona que a jornada para encontrar a jurisdição competente deve iniciar-se a partir da ideia deste problema consistir numa “questão política complexa, policentralizada” e não tentar encontrar todas as respostas na constituição. Assim, encontramos cinco argumentos de política legislativa. O primeiro é o argumento da tradição que tem como base a experiência; o segundo consiste no argumento da praticabilidade quanto a localização geográfica dos tribunais de modo ser mais conveniente o acesso da população à justiça; o terceiro corresponde ao argumento da adequação do processo à resolução do litígio. Por fim, o quarto e o quinto são os argumentos da adequação do direito substantivo aplicável à resolução do litigio e da adequação prudencial dos juízes, respetivamente.
Análise da jurisdição administrativa nos dias de hoje:
Na Conferência “A Justiça e o Interesse Público” realizada no dia 26 de outubro de 2021 a Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce Manuel da Conceição Neto, fez uma apresentação do tema da “autonomia da jurisdição administrativa e fiscal” que remonta para o ano de 1989 – data que marcou a consolidação da sua autonomia e do período em que Administração tinha de ter não só o seu “próprio direito” como também o seu próprio juiz.
Na
Europa continental é comum encontrar o modelo de matriz dualista sendo este
vigente, por exemplo, na França, Bélgica e Alemanha. Tendo esse detalhe em
consideração o legislador constituinte pretendeu seguir o paradigma e cortou
“legados históricos e com razões e tradições consideradas inadequadas” para o
eficaz desenvolvimento do Estado de Direito.
A
principal questão suscitada nesta conferência prende-se com a existência de
defensores da extinção deste modelo dualista, considerando a autonomia
inadequada para Portugal. A semente que fez crescer esta tese é só uma e
corresponde ao facto de os tribunais administrativos serem ineficientes na sua
atuação deixando muito a desejar na sua capacidade de resposta, sendo
indiscutível a sua “morosidade e lentidão”. Portanto, o problema é o modelo de
organização judiciária e a sua solução será a unificação das duas jurisdições,
através da alteração da Constituição.
Este
argumento, segundo a Senhora Presidente, é apenas uma “falácia”, visto que não existe
nenhuma fundamentação de “como” ou “de que modo” os tribunais comuns poderão
resolver o pendente problema. Ademais, não só os tribunais comuns estão a
experienciar o mesmo problema da “morosidade”, como também se verifica uma
inexistência de magistrados com experiência em contencioso administrativo e
tributário.
Sendo
esse o caso, a verdadeira causa do problema são as “pendências processuais
excessivas e insuficiências estruturais”. Esta infeliz e cruel realidade
encontra-se provada no Relatório elaborado pelo Observatório Permanente da
Justiça (OPJ) do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra em 2017 (https://opj.ces.uc.pt/site/novo/ficheiros/justica_adm/relatorio_justica_e_eficiencia_taf_23_05_2017.pdf ). Os números mostram o “elevadíssimo” número
de processos para o limitado número de funcionários e magistrados durante o
decorrer dos anos, aliás décadas, tornando uma tarefa impossível resolver todas
as pendências em tempo útil.
A
situação não melhorou com o decorrer dos anos tal como podemos ver nas
estatísticas fornecidas pela Direção-Geral da Política de
Justiça (DGPJ). (https://partilha.justica.gov.pt/Transparencia/Dados-e-Estatisticas/-Acoes-Civeis-N%C2%BA-de-Processos-Pendentes ). No presente ano, 2024, já são contados aproximadamente
134 573 processos pendentes, apesar da ligeira melhoria relativamente aos anos
de 2018 e 2019. Contudo, o número de processos tem a tendência em manter-se no
patamar dos 130 /140 mil, apresentando a falta de meios para lidar com a
sufocante carga de trabalho.
Esta realidade é repetidamente apresentada nos Relatórios Anuais de Atividade do CSTAF à Assembleia da República, porém devido ao incumprimento das leis e indiferença do Governo continuamos a viver o mesmo dia durante anos. Apesar de haver previsão normativa, é inexistente a prometida acessória jurídica para auxiliar na resolução dos litígios que atualmente tem apresentado necessidade de conhecimento de conceitos extrajurídicos.
Concluindo,
a autonomia dos tribunais administrativos e fiscais deve ser aprofundada no
sentido de valorizar o modelo dualista para conseguir responder a todos os
casos, que vimos anteriormente, enquadrados no âmbito desta jurisdição.
O
problema desta temática não é a lei, nem o método organizativo, mas os
instrumentos disponíveis nas mãos dos juízes para esculpir as soluções. A
formação dos juízes deve ser aprofundada e o investimento na eficiência
aumentado.
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Ana Isabel Shubravska Hladyshko
N.º 66384
Subturma 6
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