Monday, November 25, 2024

O decretamento provisório das Providências Cautelares

Desde a revisão de 1989, tinham existido tentativas de suprir as insuficiências legais, procedendo-se à suspensão de atos que eram negativos, mas que tinham ainda alguns efeitos positivos, tendo-se em conta o dano decorrente da demora e a gravidade do prejuízo para o interesse público, sendo aplicadas providências cautelares não especificadas, que constavam do CPC.


Com a revisão constitucional de 1997, a Constituição Portuguesa, enquadrou a proteção cautelar adequada enquanto dimensão do princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos dos administrados. Do art. 268.º/4 CRP decorre que a tutela jurisdicional efetiva engloba a adoção de medidas cautelares adequadas.



I. Processos cautelares


As providências cautelares conferem aos tribunais a possibilidade de uma regulação provisória relativamente aos interesses em causa, até ao momento da decisão da ação principal.


A regulação provisória deve ser adequada, contribuindo para a justa composição dos interesses em litígio e deve ter subjacente a preocupação de evitar o periculum in mora. O periculum in mora está associado ao objetivo de evitar que, ao terminar o processo principal e com o consequente proferimento de uma decisão a respeito deste, esta decisão já não permita assegurar os interesses em causa, em virtude do seu proferimento tardio, em resultado do desenvolvimento de acontecimentos durante a pendência do processo que tornaram inútil a decisão ou em virtude de, durante a pendência, se terem verificado danos de difícil reparação.


Note-se que, o elenco de providências cautelares constantes do art. 112.º/2 CPTA não é taxativo. Este artigo consubstancia uma cláusula aberta, uma vez que podem ser adotados todo o tipo de providências cautelares, além das elencadas no presente artigo.


De acordo com o Juíz Conselheiro Carlos Lopes do Rego, é atribuído às partes um dever genérico de requerer as providências cautelares mais adequadas a assegurar a efetividade dos seus direitos, recaindo sobre o juiz o poder-dever de decretar a providência concretamente mais adequada, tendo em conta os direitos invocados pelas partes.


Num processo cautelar, o autor num processo declarativo, visa acautelar o efeito útil da decisão que vier a ser proferida no âmbito da ação principal, de modo a impedir que, durante a pendência do processo, possam ocorrer danos graves ou dificilmente reparáveis.


De acordo com o art. 112.º/1 CPTA, os processos cautelares visam assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo judicial, procurando evitar que a sentença se torne total ou parcialmente inútil, por: 1) “infrutuosidade” - nos casos em que o decorrer de diversas circunstâncias, na pendência do processo, leva a que não seja possível executar, no plano dos factos, o que foi determinado em sentença, sendo a sentença totalmente inútil; ou por 2) “retardamento” – em que, sendo possível a execução e evitar a produção de mais danos, a sentença já não permitirá reverter os danos ocorridos até então, caso em que a sentença será parcialmente inútil.


O art. 112.º/1 CPTA permite ao interessado requerer uma ou mais providências cautelares, caso pretenda obter a conjugação dos efeitos de cada uma delas.


Os processos cautelares não são autónomos, estando na dependência da ação principal, operando como um momento preliminar ou como um incidente do processo declarativo.



II. Características das providências cautelares


As providências cautelares caracterizam-se pela: i) instrumentalidade; ii) provisoriedade e iii) sumariedade.


O processo cautelar caracteriza-se pela instrumentalidade, dado que existe em função de um processo principal (art. 113.º/1 CPTA), visando assegurar a utilidade da sentença a proferir no âmbito desse processo.


A característica da provisoriedade (art. 112.º/2 CPTA), está associada à possibilidade de o tribunal, durante a pendência do processo principal, poder revogar, substituir ou alterar a sua decisão de adoção de uma providência cautelar, nomeadamente, caso tenha ocorrido um alteração dos pressupostos de facto e de direito inicialmente existentes (art. 124.º/1 CPTA) e no caso de improcedência da ação principal, decidida por sentença de que tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo (art. 124.º/3 CPTA).

Importa considerar que não está em causa a resolução definitiva do litígio, mas antes, o estabelecimento de regulação destinada a vigorar até ao proferimento da sentença relativa ao processo principal. Atente-se ao facto de o tribunal em que é intentada a providência cautelar estar impedido de estabelecer uma regulação que resolva de imediato a questão sobre a qual incide a ação principal, sob pena de inutilizar o processo principal.


No que respeita à sumariedade, o processo cautelar implica uma cognição sumária da situação em litígio através de um procedimento simplificado e rápido, isto é, o tribunal deve proceder a apreciações perfunctórias, assentes num juízo sumário acerca dos factos carecidos de apreciação, devendo ser evitados juízos definitivos (característicos do processo principal).

Note-se, no entanto que, o art.121.º/1 CPTA consagra, uma situação de convolação do processo cautelar num processo principal, ocorrendo a substituição do juízo sumário por um juízo definitivo, quando verificados os requisitos impostos pelo artigo.



III. Providências conservatórias e antecipatórias


Até à Revisão de 2015, eram diferentes os critérios que permitiam a adoção de um dos dois tipos de providências cautelares constantes do art. 112.º/1 CPTA - providências antecipatórias e conservatórias - estando previstos critérios mais exigentes para a adoção de providências antecipatórias. Com a Revisão de 2015, procedeu-se a uma uniformização do disposto no art. 120.º/1 CPTA, passando os dois tipos de providências cautelares a depender dos mesmos critérios.


Os Professores Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, defendem uma interpretação em sentido funcional da referência aos dois tipos de providências cautelares, constantes do art. 112.º/1 CPTA: i) nos casos em que se procure a tutela de situações jurídicas finais, estáticas ou opositivas, em que a satisfação do interesse do seu titular não está dependente de prestações de outrem, pretendendo-se apenas que não sejam praticadas condutas suscetíveis de atentar contra a sua situação jurídica, deve recorrer-se a uma providência conservatória; ii) já as situações jurídicas instrumentais, dinâmicas e pretensivas que correspondem àquelas em que a satisfação do interesse do titular depende da realização de prestações por outrem, pretendendo o titular do interesse em causa garantir a sua satisfação, deve recorrer-se a uma providência antecipatória.


Assim, de acordo com o Acórdão do STA de 31 de janeiro de 2005, as providências conservatórias destinam-se a reter, na posse ou na titularidade do particular, um direito a um bem de que ele já disponha, mas que está ameaçado de perder, enquanto as providências antecipatórias pretendem obter, antes que o dano aconteça, um bem a que o particular tenha direito.


Nas providências conservatórias, o interessado pretende manter um direito (manter o statu quo), aquando da verificação de “periculum in mora” ou quando despoletou o litígio, evitando que esse direito por si invocado seja prejudicado por posteriores medidas adotadas. Neste tipo de providência, recai sobre o demandante o ónus material da prova. A este respeito considere-se a situação em que o interessado reage contra um ato administrativo de conteúdo positivo, impugnando esse ato.


Nas providências antecipatórias, pode ser necessário antecipar, ainda que não a título definitivo, a constituição de uma nova situação jurídica, equivalente àquela que se pretende obter com o processo principal. Neste tipo de providência, o interessado visa a adoção de determinadas medidas (pressupondo a alteração do statu quo), para diminuir os prejuízos decorrentes do retardamento da decisão acerca da ação principal, não tendo necessariamente de passar pela prática de um ato administrativo. Recai sobre o autor o ónus material da prova do bem fundado das suas pretensões.

Note-se que, as providências antecipatórias não têm obrigatoriamente subjacente a antecipação provisória da utilidade pretendida no processo principal, assentando antes no estabelecimento de regulação provisória que não proporcione ao particular exatamente aquilo que lhe poderá ser reconhecido em juízo relativamente ao processo principal.



IV. Legitimidade para adoção de providências cautelares


Atendendo ao disposto no art. 112.º/1 CPTA, tem legitimidade para a adoção de providências cautelares todo aquele que tenha legitimidade para intentar ação junto da justiça administrativa, e não apenas os particulares que recorram aos tribunais administrativos em defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. São aplicáveis as regras gerais do CPTA relativamente à aferição de legitimidade (arts. 9.º, 10.º, 55.º, 68.º/1, 73.º e 77.º- A CPTA).


No que respeita à legitimidade passiva, de acordo com o art. 10.º/1 CPTA, o processo cautelar deve ser intentado contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.



V. Critérios para decisão das providências cautelares


O art. 120.º/1 CPTA estabelece dois critérios cumulativos para decisão das providências cautelares: 1) periculum in mora (fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal) e 2) fumus boni iuris (na sua formulação positiva, pressupõe que seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente).


O periculum in mora corresponde ao receio justificado de que, quando o processo principal chegue ao fim e com o proferimento da decisão pelo juiz, esta decisão já não seja proferida em tempo oportuno, não permitindo dar uma resposta adequada às situações jurídicas em causa, em resultado da evolução de diversas circunstâncias durante a pendência do processo, as quais tornaram a decisão sobre ele totalmente inútil ou em virtude de tal evolução ter conduzido à produção de danos de difícil reparação.

É necessário que exista um fundado receio quanto à ocorrência das circunstâncias acima mencionadas, recaindo sobre o requerente o ónus de alegar e demonstrar os factos que permitam a formulação de um juízo sobre o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que este visa assegurar no processo principal.


Tendo em conta o Acórdão de 14 de janeiro de 2022, do TAC Norte, “o juiz deve ponderar as circunstâncias concretas do caso em função da utilidade da sentença e não decidir com base em critérios abstratos, ponderando, designadamente, sobre as dificuldades que envolvem o restabelecimento da situação que deveria existir se a conduta ilegal não tivesse tido lugar”. Recorrendo a um juízo de prognose, o juiz deve atender aos prejuízos relevantes, tendo em conta os interesses do requerente, independentemente de o perigo respeitar a interesses públicos, comunitários ou coletivos ou a interesses individuais.



O fundado receio pressupõe a existência de circunstâncias factuais que revelem, de forma objetiva, a iminência da lesão e a necessidade de serem tomadas medidas cautelares que impeçam a ocorrência de tais prejuízos, não se afigurando suficiente a existência de um receio meramente eventual ou hipotético.



De acordo com o Juíz Conselheiro Abrantes Geraldes, “o receio de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar com objetividade e distanciamento a seriedade e a atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo”.



O requisito do fumus boni iuris, diz respeito ao juízo de probabilidade ou de verosimilhança - à aparência do direito. Este critério está associado a uma formulação positiva, pressupondo uma avaliação sumária acerca da existência do direito invocado pelo requerente ou das ilegalidades que o mesmo invoca e da probabilidade de sucesso do seu pedido na ação principal. O juiz deve atender à probabilidade de sucesso do requerente no processo principal e ao comportamento judicial e extrajudicial do requerido, não antecipando, no entanto, o juízo referente ao processo principal.



O Professor Mário Aroso de Almeida defende a solução do art. 120.º/1 CPTA vigente antes da Reforma de 2015, em que se distinguia concretamente as providências conservatórias das antecipatórias, considerando que apenas quando estivesse em causa a adoção de providências antecipatórias, a aplicação do critério do fumus boni iuris implicaria que o encargo de fazer prova perfunctória do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal recaísse sobre o requerente. Para o Professor, a Reforma de 2015 implicou uma limitação dos cidadãos no acesso à tutela cautelar, por proceder à uniformização dos critérios gerais de atribuição de providências cautelares antecipatórias e conservatórias, na medida em que para a adoção de ambas se passou a exigir a probabilidade de procedência da pretensão formulada ou a que venha a ser formulada no processo principal.


Contudo, o preenchimento dos dois requisitos mencionados pode não ser suficiente para a adoção de uma providência cautelar. Caso se verifique a situação prescrita pelo art. 120.º/2 CPTA, e, portanto, com base numa ponderação de prejuízos, o tribunal entenda que os danos que resultariam para o interesse público, com a adoção da medida cautelar, se afigurem superiores aos danos que podem resultar da sua recusa para o requerente, não deverá ser concedida a providência cautelar.


Assim, o decretamento de uma providência cautelar está sujeito a um juízo de valor absoluto sobre a situação do requerente, tendo em conta os dois critérios do art. 120.º/1 CPTA, mas também a um juízo de valor relativo, assente na comparação entre os prejuízos que podem ocorrer com a adoção da providência para o requerente e para os contra-interessados, de acordo com um juízo de proporcionalidade (art. 120.º/2 CPTA). O juiz deve, casuisticamente, proceder a uma ponderação global equilibrada acerca dos prejuízos que poderão vir a ocorrer sobre os interesses em causa, devendo contrapor os danos que poderão ocorrer com a atribuição da providência cautelar, quer para os interesses públicos, quer para os privados.


Deste modo, o art. 120.º/1 CPTA estabelece dois critérios fundamentais para a adoção de uma providência cautelar, acrescentando o art. 120.º/2 CPTA uma cláusula de salvaguarda - um critério adicional de ponderação de danos ou prejuízos, na medida em que, em função das circunstâncias do caso, o juiz deve tomar a decisão que envolva, objetivamente, menos prejuízos.

Para o Professor Mário Aroso de Almeida este critério de ponderação não tem subjacentes valores ou interesses, estando sim em causa uma ponderação de prejuízos reais, que, numa prognose relativa ao tempo previsível de duração da providência cautelar e atendendo às circunstâncias do caso, ocorreriam com a recusa da adoção ou com a concessão plena ou limitada de tal providência.


De acordo com o art. 120.º/2 CPTA, o ónus de alegação da circunstância impeditiva e o ónus da prova recaem sobre os requeridos.


O art. 120.º/3 CPTA consagra também o princípio da proporcionalidade, ao permitir que possa ser decretada outra ou outras providências, em substituição ou em cumulação, com as já requeridas, para evitar ou atenuar o ocorrência de danos desproporcionados para os demais interesses em litígio.



Em suma, as providências cautelares devem ser entendidas como uma forma de assegurar a justiça, permitindo assegurar a efetividade dos direitos ameaçados ou dos interesses legalmente protegidos, durante a pendência do processo principal.

Através de regulação provisória, é possível acautelar o efeito útil da ação principal, visando a justa composição do litígio e evitando o periculum in mora.




Bibliografia:


ALMEIDA, Mário Aroso de, CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao CPTA – 2021, 5.ª edição, Almedina


ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 6.ª edição, Almedina


Acórdão STA

https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1381efd82f838a52802586b4004365bf?OpenDocument


Acórdão STA

https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/0/3a9aa8943cd85bcc80256f930054d9f4?OpenDocument&ExpandSection=1


Acórdão TAC Norte

https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/87573bbced5655a0802587d100443b2e?OpenDocument


Acórdão TAC Sul

https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/9c27b7e3894da3b380258986003db8c0?OpenDocument



Maria Constança Madeira Brogueira Monteiro Lagarto, nº 66503





Sunday, November 24, 2024

Responsabilidade Civil da Administração Pública

 Responsabilidade Civil da Administração Pública


            No começo, relativamente à matéria de responsabilidade civil da Administração Pública, até a reforma do Contencioso Administrativo encontraríamos uma bifurcação de soluções: se os danos foram causados no desempenho de atividades de gestão privada então a Administração responde segundo o Direito civil perante os tribunais judicias e se os danos foram causados no exercício de atividades de gestão pública então a Administração responde segundo o Direito Administrativo perante os tribunais administrativos, tal como refere o Professor Freitas do Amaral sobre esta questão. Esta dualidade remonta para uma “fragmentação” de soluções jurídicas não estando nem perto de satisfazer as garantias dos cidadãos e consiste numa solução sem logica, pois, funda-se na distinção entre gestão publica e privada.

            Para o Professor Vasco Pereira da Silva, esta distinção não tem nenhuma razão de existência uma vez que o seu pressuposto assenta numa ideia autoritária de Administração que exercia poderes de autoridade e como consequência corresponde a ideia de que o Direito Administrativo é apenas um conjunto de normas “excecionais” do Direito Civil.

Além disso, é impossível distinguir atuações informais e técnicas e operações materiais da Administração. Aliás, estas operações são os factos que frequentemente originam a responsabilidade civil e utilizar a distinção de gestão publica e privada é ineficaz. Isto é. Por exemplo, a atuação de um médico não é diferente quanto a sua natureza se for realizado no setor publico ou privado.

            Atualmente, não é utilizada a regra formal do exercício do poder, mas sim a ideia material da função administrativa para unir a totalidade das atuações administrativas. Logo, o nosso tempo e esforço devia ser usado para uniformizar o regime jurídico, visto que a satisfação de necessidades coletivas através de entidades publicas e privas é o elemento comum e presente em todas as atuações administrativas.

            A maior prova da futilidade de distinção entre o tipo de gestão encontra-se na jurisprudência que renunciou ao critério lógico de distinção e passou a utilizar o critério da “lógica de sensação da arte”, ou seja, a procurar referências ao “ambiente”, isto é direito público. A realidade de que os tribunais judicias e administrativos se consideravam incompetentes para decidir casos de gestão pública e privada moldando este “injusto” sistema que vigorou até 2004. Para entender o motivo da utilização do termo “injusto” iremos ao lugar onde tudo começou.

O problema tem origem num caso real que ocorreu na França e tem como personagem principal uma menina de cinco anos e como vilão a empresa pública de tabaco de Bordéus. A trágica história consiste no atropelamento da menina por um vagão desta empresa e de uma indemnização que não chegou até as mãos dos pais com o fundamento de incompetência do tribunal de Bordéus e ser inexistente uma lei aplicável ao caso.

            Contudo, mesmo quando os pais se dirigiram ao Conselho de Estado ouviram as mesmas palavras de incompetência e da ausência de lei aplicável. Devido a este conflito foi chamado o Tribunal de Conflitos que declarou o caso dentro da competência da Justiça Administrativa e perante a ausência de lei deve-se criar normas com o objetivo de proteger a Administração e de responsabilizar esta entidade na matéria de responsabilidade civil.

            Consequentemente, devido a ausência de critérios lógicos que permitissem agrupar situações no âmbito da gestão pública e privada, respetivamente, as dúvidas quanto ao direito aplicável eram frequentes e provocavam conflitos de jurisdições e problemas quanto a (falta de) celeridade do tempo de resposta e até casos inaceitáveis de lesão do direito fundamental à proteção dos particulares. Assim, chegamos à Reforma do Contencioso e com ele presenciamos uma nova história com a consagração da unidade jurisdicional na responsabilidade civil da Administração Pública com efeitos no direito substantivo. Contudo, esta história é nada mais do que um “remake”, uma vez que o material usado como fonte é o mesmo sendo mantida a dualidade legislativa.

            Os tribunais administrativos e fiscais são competentes em razão da natureza das relações jurídicas em causa nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da CRP e 1.º, n.º 1 do ETAF, integrando (ou não) o caso concreto numa das alíneas dessa cláusula geral e aberta, não sendo a lista taxativa, mas exemplificativa.

            Quanto à responsabilidade civil pública em concreto são relevantes as alíneas g), h) e i) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF. A partir da análise destas alíneas concluímos que estamos perante um regime de unidade jurisdicional não só no contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, mas também no contencioso de “toda a responsabilidade civil pública” que entra na gaveta de competências dos tribunais administrativos. Portanto, verifica-se o abandono do critério da “falsa distinção” entre gestão pública e privada que discutimos anteriormente passando esta unificação do regime a uma resposta correta para o problema da responsabilidade na ótica do Professor Vasco Pereira Silva.

            Passaremos agora a um breve estudo das alienas para entendermos como o ordenamento jurídico português enquadra e resolve estes casos. Em primeiro lugar, a alínea g), consagra a uniformização jurisdicional da globalidade do contencioso da responsabilidade civil publica. Portanto, verificamos um alargamento da cláusula geral da natureza administrativa, sendo qualificada como administrativa qualquer relação de responsabilidade civil pública. Além disso, através desta norma define-se a competência da jurisdição administrativa para apreciar qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública. Para este efeito é completamente irrelevante saber se estamos perante atuação de gestão pública ou privada, pois a jurisdição administrativa passa a ser competente em todos os casos. Porém, o Professor Vieira de Andrade tem uma visão ligeiramente diferente, entende que, de facto, os tribunais administrativos são competentes para julgar litígios concernes da atuação de entidades publicas através de atos de gestão privada. Contudo, no final será a jurisprudência a avaliar a dimensão da ampliação do regime substantivo, ao passo que a diferenciação da atuação persiste e a definição tem atuação privada ou pública pressupõe consequências distintas.

            De seguida aliena h), complementa a alínea anterior atribuindo competência aos tribunais administrativos nos casos de “responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.

            Por fim a aliena i), permite englobar por um lado, situações de exercício da função administrativa através de cooperação de entidades privadas com a Administração pública e por outro, as atuações que revistam forma privada da Administração pública. Esta alínea suscita uma dúvida quanto a sua aplicabilidade imediata. Verificando-se uma divergência doutrinária, os dos Professores Mário Aroso de Almeida e Diogo Freitas do Amaral apontam que o artigo 4.º, n.º 1 do ETAF não tem alcance prático e, por isso, os tribunais administrativos não serão competentes para apreciar a responsabilidade de entidades privadas, visto que não existe fundamento em nenhuma disposição de direito substantivo.

            Na oposição, os Professores Vieira de Andrade e Vasco Pereira da Silva defendem que, pelo menos, nos casos de “responsabilidade por exercício de poderes públicos por concessionários (…) e por entes privados de mão pública (…)” o regime substantivo de direito público deve ser aplicado por presunção em conformidade com a alínea d). Por sua vez,

            Passando para o “novo” regime de responsabilidade civil pública, falaremos agora da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro aplicável, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, aos “danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa” em concordância entre a uniformização jurisdicional e o regime substantivo da responsabilidade civil. Este regime surge para um aperto à unificação jurisdicional e dar um fim à “ilógica” distinção entre gestão pública e privada, porém no artigo 1.º n.º 2 deparamo-nos com incerteza na interpretação da norma, devido à “ambiguidade do legislador” na utilização da expressão “prerrogativas de poder público”.  Estas palavras, utilizando a expressão do Professor Vasco Pereira da Silva, “ressuscitam” a distinção que tínhamos dado como ultrapassada. Na perspetiva deste Professor, a norma coloca um fim a dualidade, devendo ser interpretada como uma norma unificadora do regime jurídico da função administrativa quanto à responsabilidade na sua totalidade. Alguns dos argumentos desta posição são a utilização da dita expressão como se fosse uma alternativa dando a entender que o regime é aplicável nas duas possibilidades de atuação ou omissão. Além disso, o legislador tinha a intenção de unificar o regime da responsabilidade, como podemos ver no artigo 1.º n.º 3 e 4, sendo irrelevante a natureza da atividade ou o sujeito. O terceiro argumento utiliza o artigo 2.º n.º 5 do CPA, visto que a expressão “normas ou princípios de direito administrativo” abrange as atuações de gestão privada na medida em que princípios são aplicáveis a “toda e qualquer atuação da Administração Pública”.

O CPTA, no âmbito da responsabilidade civil pública, cria dois meios processuais sendo estes a ação administrativa comum prevista no 37.º e seguintes e a ação administrativa especial que se encontra no artigo 46.º e seguintes. Estas duas modalidades são consideradas modalidades de ação “guarda-chuva” ou “ação quadro” onde são integradas várias “subações” consoante o pedido. Seguindo a lógica do diploma, em princípio, enquadramos as situações de responsabilidade civil pública na ação administrativa comum. Caso haja cumulação de pedidos a ação adequada é a ação administrativa especial for força do artigo 5.º, n.º 1.

Começaremos pelo artigo 37.º - esta norma fornece uma enumeração, a título meramente exemplificativo, dos pedidos que podem ser tutelados pela ação administrativa comum. Por usa vez, surge o artigo 38.º do CPTA que corta o “clássico entendimento do caso decidido” dos atos administrativos considerados como uma realidade substantiva ao consagrar a separação do dever de indenizar do ónus de impugnar o ato. Isto é, esta norma é significativa para a autonomização do pedido de indemnização que resolve uma “vexata questio” no ordenamento jurídico português considerada, aliás inconstitucional pelo Professor Vasco Pereira da Silva. Isto é, o direito à indemnização é um direito tão fundamental como o direito de impugnação contenciosa, logo ao interpretar o artigo 7.º do DL n.º 48 051 de 21 de novembro de 1967, é “manifestamente inconstitucional” entender que o dever de indemnização apenas existia se houvesse interposição de recurso contencioso de anulação do ato administrativo pelo particular.

Assim sendo, esta solução pode ser encontrada no artigo 6.° da Lei n.° 67/ 2007, de 31 de dezembro, segundo o qual “quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados (…) cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas tiverem resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”,

Passando para a ação administrativa especial, esta é utilizada nos casos de cumulação de pedidos relativos a um ato ou regulamento administrativo com o pedido de indemnização no âmbito da responsabilidade civil publica. Esta ação especial é considerada uma novidade que o Professor Vasco Pereira da Silva designa como “processo dois em um”, sendo uma inovação introduzida com a reforma do Contencioso Administrativo. O motivo para tal denominação deve-se ao facto de ser possível tratar num só juízo a apreciação da relação jurídica estabelecida entre as partes no seu todo e não dividida em vários meios processuais.

            Finalmente, podemos concluir que o diploma de 31 de dezembro apesar de não ser perfeito, permite colocar a distinção entre gestão pública e privada na gaveta do passado esperando nunca mais ser aberta. Quanto a matéria de responsabilidade o próprio ETAF é amplo na atribuição de competência aos tribunais administrativos, tal como vimos nas três alíneas mencionadas, em comparação à cláusula geral presente no artigo 212.º, n.º 3 da CRP.

 

 

Bibliografia:

SILVA, Vasco Pereira da; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise, Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo, 2.ª Edição; Edições Almedina; Coimbra; 2013, pp. 518-558.

CADILHA, Carlos; O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa.

CANELAS, Maria Helena Barbosa Ferreira; A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a responsabilidade Civil Contratual; JULGAR N.º 15; Coimbra Editora; Coimbra; 2011.

BARRAS, Tiago Viana; A Responsabilidade Civil Administrativa do Estado.



Ana Isabel Shubravska Hladyshko

N.º 66384

Subtuma 6

Saturday, November 23, 2024

O Princípio da devolução facultativa ou da suficiência discricionária - Questões Prejudiciais

O princípio da devolução facultativa confere ao juiz o poder de decidir ou de devolver a questão prejudicial. Este princípio está consagrado no art.15.ºCPTA, dividindo-se em duas vertentes: 1) devolução facultativa e 2) suficiência discricionária.

Este regime, instituído pelo art. 4.º/2 ETAF em 1984, veio substituir o princípio da devolução obrigatória então defendido, em que o juiz tinha o dever de sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronunciasse.


Para efeitos do art.15.º CPTA, questões prejudiciais devem ser entendidas como questões de cuja resolução depende o conhecimento e resolução de uma outra, ou seja, questões que, apesar de não constituírem elas próprias esse objeto, se apresentam como pressupostos fundamentais das questões que constituem esse mesmo objeto, e cujo conhecimento, desligado do objeto do recurso, ou seja, apreciado autonomamente, pertence a outra ordem de tribunais.


Para o Professor Alberto dos Reis, uma verdadeira questão prejudicial, deve preencher os seguintes pressupostos cumulativos: a) representar um antecedente lógico-jurídico, relativamente à decisão da questão principal, demonstrando a necessidade da sua resolução previamente à decisão da questão principal; b) ser autónoma, na medida em que, pelo seu objeto ou natureza, legitima um processo independente, no âmbito de jurisdição que não seja a Administrativa; c) ser necessária, dado que a sua resolução deve ser plausível, não bastando ser dilatória.


Considere-se os seguintes exemplos de questões prejudiciais:

i) no Acórdão do STA de 3 de julho de 2003, em que fora intentada ação destinada à remoção de uma caravana de um terreno, constita questão prejudicial o juízo acerca da titularidade do terreno onde se encontrava “implantada” tal caravana;

ii) no Acórdão do STA de 30 de outubro de 2019, concluiu-se que a reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de IRC de 1996 constituía questão prejudicial relativamente à decisão de mérito quanto a 1997, dado que esta estaria dependente daquela que viesse a ser proferida em definitivo quanto a 1996;

iii) no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 30 de setembro de 2022, em que foi intentada ação de impugnação do despacho proferido pelo Senhor Vereador do Pelouro da Câmara Municipal, para que este procedesse à desocupação do caminho público colocando-o na situação em se encontrava anteriormente à obra de construção de um muro e colocação de um portão, entendeu-se que se tratava de uma questão prejudicial a aferição da titularidade do espaço onde se encontravam implantados o muro e o portão em causa.


Sinteticamente, uma questão prejudicial é aquela que faz depender a questão principal da sua resolução, cuja competência é atribuída a tribunais pertencentes a uma ordem de jurisdição diferente.


Note-se que o art. 272.º/1 CPC contempla uma situação diferente de suspensão da instância por determinação do juiz (ou acordo das partes), em que a ação prejudicial está pendente no tribunal em causa ou noutro e a suspensão da instância justifica-se pelo facto de o julgamento de um processo pendente poder condicionar a decisão de mérito do juiz acerca da decisão relativa ao outro processo.


O princípio em análise atribui à jurisdição administrativa o poder de decidir sobre todas as questões necessárias à decisão das questões que constituam o objeto dos recursos da sua competência, mesmo que, para o efeito, seja necessário decidir questões (prejudiciais) para cujo conhecimento (autónomo) seja competente a jurisdição comum..


O art.15.º/1 CPTA, permite ao juiz, face a uma questão prejudicial que esteja no âmbito de jurisdição de outro tribunal, optar livremente entre duas opções: 1) sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie (devolução facultativa) ou antes, 2) decidir a questão prejudicial com base nos elementos de prova admissíveis e com efeitos restritos àquele processo (suficiência discricionária).


O princípio da devolução facultativa deverá ainda ser conjugado com o princípio da economia processual (que concretiza o princípio da tutela jurisdicional efetiva), dado que, o juiz, para proceder à escolha de entre uma das duas opções supra referidas, deverá atender ao grau de complexidade da questão prejudicial em causa, bem como à facilidade (ou não) de recolha dos elementos de prova, promovendo um processo célere e eficiente e evitando trâmites desnecessários.


No entanto, os arts. 15.º/2 e 3 CPTA, estabelecem que, tendo o juiz optado por sobrestar na decisão, caso a ação de competência do tribunal pertencente a outra jurisdição não seja proposta no prazo legalmente previsto (dois meses) ou no caso de, por negligência das partes, não ter sido dado andamento ao processo, considera-se que a a suspensão do processo administrativo fica sem efeito, pelo que, o juiz deve conhecer da questão prejudicial, com os elementos de prova disponíveis, existindo restrição desses efeitos àquele processo administrativo. Nesta situação, seguindo o processo no contencioso administrativo (art. 15.º/3 CPTA), a questão prejudicial é decidida no próprio processo, a título incidental.




Bibliografia:


ALMEIDA, Mário Aroso, CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao CPTA – 2021, 5ª edição Almedina


REIS, Alberto dos, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, III, 1946


Revista: https://www.datavenia.pt/ficheiros/edicao02/datavenia02_p133-144.pdf


Acordão STA: https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2e4ce3af216fd45480256ede004928ed?


Acórdão STA:

http://www.gde.mj.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2ec843465baf8bf8802584ab00417034?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1


Acódão STA:

https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/173bc8e13b63d5bb80256d64004c9754?OpenDocument&ExpandSection=1


Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte:

https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/b9e046368a51b38f802588fb003ea537?OpenDocument




Maria Constança Madeira Brogueira Monteiro Lagarto, nº 66503


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