Saturday, October 26, 2024

Condenação da Ordem dos Advogados: Análise ao Acórdão TCAS

Condenação da Ordem dos Advogados: Análise ao Acórdão TCAS 

(Por violação de direitos fundamentais, liberdades e garantias de um advogado-estagiário)

Breve Introdução

No ano passado, foi proferido o douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 13 de abril de 2023, proc. n.º 1947/22.9BELSB, de que foi relator a Senhora Juiz Dora Lucas Neto, em coletivo com os Senhores Juízes Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira, relativamente à Ordem dos Advogados praticar um novo ato administrativo de classificação do exame escrito de um advogado-estagiário, Autor e Recorrente, de modo a substituir a classificação atribuída. Neste comentário, tomamos a liberdade de analisar os requisitos de admissibilidade desta ação de intimação, os pressupostos processuais da mesma, e ainda, avaliar brevemente a decisão de mérito.

 

Ação de intimação e Processos urgentes

No caso em apreço, foi intentada uma ação de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (cfr. Artigos 109.º a 111.º do CPTA) que, como salienta o Senhor Professor Mário de Aroso de Almeida, trata-se de um processo que tanto pode ser dirigido contra a Administração, como contra particulares, designadamente concessionários, visando impor tanto a adoção de uma conduta positiva como de uma conduta negativa, na primeira situação, e sendo caso disso, o juiz pode fixar um prazo para o cumprimento e o responsável pelo mesmo, podendo ainda impor o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória para o caso de incumprimento da intimação (cfr. Artigo 111.º/2 e 4)[1].

Estamos perante um processo urgente (cfr. Artigo 36.º/1, al. e), CPTA), de natureza excecional, aplicável às situações que carecem de e salvo a redundância, uma pronúncia da forma mais célere possível, que não se compadece com as delongas de um processo ordinário comum[2]. O CPTA prevê, no seu Título III, cinco tipos de situações em que, sem prejuízo da existência de outras que possam ser previstas em legislação especial (cfr. a ressalva no início do artigo 369.º/1), entende existir a necessidade de obter, com urgência, uma decisão de fundo sobre o mérito da causa. Estas cinco formas de processos têm por objeto as questões do contencioso eleitoral cuja apreciação é atribuída à jurisdição administrativa (artigo 98.º), os litígios respeitantes a procedimentos de massa (artigo 99.º) e a atos praticados no âmbito dos procedimentos de formação de certos tipos de contratos (artigos 100.º a 103.º-B) e os pedidos de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (artigos 104.º a 108.º) e para a proteção de direitos, liberdades e garantias (artigos 109.° a 111.º).[3]

 

Pressupostos da Ação de Intimação

Para aferir se o Tribunal tem competência para conhecer do mérito da causa, importa atentar ao artigo 4.º/1, al. a), ETAF, que incumbe à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais ou outros direitos e interesses legalmente protegidos.

De acordo com o artigo 44.º/1, 1.ª parte, ETAF, a jurisdição pertence aos Tribunais Administrativos de círculo. O artigo 20.º/5, CPTA, é a norma especial de competência territorial aplicável aos processos de intimação, que determina que esta deve ser instaurada no Tribunal da área onde deva ter lugar a ação ou omissão pretendidas.

Na hipótese de recurso de uma decisão que demonstrou ser desfavorável ao Requerente (como sucede no caso em estudo), o recurso é sempre possível, independentemente do valor da causa (cfr. Artigo 142.º/3, al. a), CPTA - desvio à regra geral do Artigo 142º/1)[4].

No que diz respeito à legitimidade processual, a regra geral prevista para a legitimidade ativa encontra-se prevista no artigo 9.º/1, CPTA (conjugando-o com o artigo 109.º/1, é conferida legitimidade ativa aos titulares de direitos, liberdades e garantias que demonstre ser objeto de lesão), segundo a qual o autor é considerado parte legítima quando alegue um sujeito da relação material controvertida. 

Quanto à legitimidade passiva, esta cabe à Administração, que corresponde à contraparte da relação material controvertida (cfr. Artigo 10.º/1, CPTA). Contudo, para se apurar a regra especial aplicável ao caso concreto, há que proceder à delimitação da natureza da parte demandada aos autos, i.e., a Ordem dos Advogados[5]. Sendo esta uma associação pública profissional, esta encontra-se, por isso, sujeita a um regime de direito público. Por essa razão, e conforme o disposto no artigo 10.º/2 CPTA, podemos concluir que estamos perante uma parte legítima (passiva) no processo, e pode, concretizando, ser a Ordem dos Advogados, demandada.

A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias caracteriza-se como sendo um meio de defesa de direitos fundamentais e, por esse mesmo motivo, não está sujeita a qualquer tipo de prazo (cfr. Artigo 41.º/1, CPTA), devido à sua configuração específica na nossa ordem jurídica.

admissibilidade do pedido de intimação passa necessariamente pelo preenchimento de determinados requisitos, previstos no artigo 109.º/1 CPTA, e passo a citar:

“A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”

No Acórdão em análise, o Tribunal considerou haver concretização suficiente para que se pudesse afirmar um justo receio de lesão de um direito fundamental, nomeadamente, o acesso à profissão, consagrado no artigo 47.º/1 da Constituição. 

Ora, conforme escreveram os Senhores Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, a liberdade de escolha de profissão é:

“Um direito fundamental complexo, comportando vários componentes:, nomeadamente, não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão; não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos” e, ainda “uma das componentes comuns a todos os direitos, liberdades e garantias é o princípio da igualdade, não podendo haver discriminação no acesso às diversas profissões, por qualquer razão que seja”[6].

 

Decisão de Mérito

Do dispositivo da decisão de mérito, ficou a Ordem dos Advogados constituída da obrigação de praticar um novo ato administrativo de classificação do exame de agregação do Autor, para que dessa resulte a classificação de "Aprovado" e, consequentemente, a atribuição do título profissional de advogado. 

Contrariamente à apreciação do Tribunal de primeira instância, decidiu o Tribunal ad quem que a correção do exame escrito do Requerente não se referia a uma competência discricionária técnica, mas a um ato vinculado, uma vez que foi a própria Ordem dos Advogados quem determinou os critérios uniformes de avaliação dos candidatos e as orientações de correção das provas e foi, simultaneamente, quem incumpriu essas mesmas normas de auto-vinculação administrativa.

Segundo o Senhor Professor Freitas do Amaral estamos perante um ato vinculado (praticados pela Administração no exercício de poderes vinculados) quando a lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada, contrapondo aos atos discricionários (praticados no exercício de poderes discricionários) que se caracterizam pelo seu exercício ficar entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere[7].

Concluindo, consideramos inequívoco que a lei processual administrativa preveja requisitos estritos que devem ser cumpridos pelo demandante para que este possa usufruir da ação de intimação prevista para direitos, liberdades e garantias, tendo em conta que a lei configura a intimação como um meio de tutela excecional e prevê outros meios processuais de tutela do direito de acesso à justiça, como é o caso das providências cautelares.

O sistema não pode tolerar abusos de litigância, principalmente, em sede de direitos fundamentais, atendendo ao atual cenário do Contencioso Administrativo e Fiscal, nem pode aceitar que os particulares exijam uma justiça rápida em qualquer situação, sabendo que pode haver sacrifício de provas ou do direito ao contraditório no caso dos processos urgentes. Por outro lado, é de congratular que se preveja, no processo judicial administrativo, uma ação como a intimação, que visa proporcionar uma reação rápida a casos de violação dos direitos, liberdades e garantias.

Diferentemente do Tribunal recorrido, considerou o Tribunal Central Administrativo-Sul, acertadamente, que o limite de liberdade na correção do exame escrito do Requerente estava limitado por um ato vinculado, emanado pela própria Ordem dos Advogados, que delimitou critérios de avaliação dos examinandos. Além disso, considerou, que o controlo jurisdicional dessa avaliação era legítimo por incidir sobre os limites externos da margem de liberdade que, violando a auto-vinculação, pertencem ao bloco da legalidade.

____________________________

Referências bibliográficas

·       AROSO DE ALMEIDA, M. (2016). Manual de Processo Administrativo (Almedina, 2a ed.)

·       AROSO DE ALMEIDA, M., & FERNANDES CADILHA, C. A. (2022). Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Almedina, Ed.; 5.a ed., Reimp.)

·       CANOTILHO, J. G., & MOREIRA, V. (2007). Constituição da República Portuguesa Anotada I (C. Editora, Ed.; 4.a ed., pp. 652 e ss)

·       FREITAS DO AMARAL, D. (2016) Curso de Direito Administrativo: Vol. II (Almedina, Ed.; 3a Edição) 

·      MARTINS, A. G. (2014). Os processos urgentes no anteprojeto de revisão do CPTAJulgar - N.o23; Coimbra Editora. Acessível através do link: https://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/05/08-Ana-Gouveia-Martins.pdf

Jurisprudência citada

  • Acórdão em análise: TCA-S, Proc. n.º 1947/22.9BELSB, de 13.04.2023, Relatora: Dora Lucas Neto, acessível aqui.

Legislação consultada

  • Constituição da República Portuguesa (CRP).
  • Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro.
  • Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais (Lei-Quadro das Associações Públicas Profissionais), aprovado pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídicos de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, acessível aqui.

 

Trabalho realizado por: Carina Roque Milhinhos

Subturma 6 - 66484

 



[1] ALMEIDA, Mário de Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed. Coimbra, Almedina, 2016.

[2] ANA GOUVEIA MARTINS, “Os processos urgentes no anteprojeto de revisão do CPTA”.

[3] ALMEIDA, Mário de Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed. Coimbra, Almedina, 2016.

[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

[5] A OA é uma associação pública profissional de estrutura associativa representativa da profissão de advogado, nos termos previstos no artigo 2.º do Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais, aprovado pela Lei n.º 12/2013, de 10 de janeiro. É uma pessoa coletiva de direito público e integra a Administração Autónoma do Estado. Neste sentido, está sujeita à intervenção da tutela do Governo e ao poder de fiscalização da sua atividade com fundamento na ilegalidade. Assim, nos processos intentados contra entidades públicas, aplica-se o artigo 10.º/2, CPTA, que fixa que seja demandada a pessoa coletiva de direito público.

[6] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 652 e ss.

[7] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3.ª edição, 2016, Almedina, Coimbra, pp. 65-86

Friday, October 18, 2024

Os Elementos do Processo no Direito do Contencioso Administrativo

O processo administrativo tem ganho uma importância crescente, pois assegura o direito à informação dos cidadãos sobre os procedimentos administrativos, um direito consagrado legal e constitucionalmente (Artigos 82.º a 85.º do Código do Procedimento Administrativo e Artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa).

Tal como afirma o Professor Mário Aroso de Almeida, a reforma do regime do processo no Contencioso Administrativo (que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2004) tratou-se de uma verdadeira revolução, através da qual se instituiu um novo Contencioso Administrativo, que se afasta do modelo francês para se aproximar do modelo alemão.

Para além disso, o processo administrativo tem ainda como finalidade, na maioria das vezes, instruir o processo contencioso de anulação da decisão correspondente em tribunal. Isto porque, até há pouco tempo, a prova documental era o principal meio de prova aceite no contencioso administrativo. 

Hoje em dia, os tribunais administrativos costumam dispensar a prova testemunhal, considerando que a prova documental, ou seja, o processo administrativo em si, é suficiente. 

É ainda relevante destacar a importância da formalização escrita dos atos e das formalidades, uma vez que mesmo os atos que não exigem forma escrita devem ser registrados em ata, auto ou relatório (conforme o artigo 34.º do Código do Procedimento Administrativo).

Para que exista uma relação jurídica processual é necessária, desde logo, a existência das partes, às quais se poderá acrescentar a existência do tribunal, independentemente da competência, não havendo processo se a petição for dirigida a um órgão não judicial – a estes elementos se pode chamar, por isso, com toda a propriedade, condições de existência da ação, que constituem naturalmente elementos essenciais da causa.

            Além destas condições de existência, poderão ainda considerar-se como elementos essenciais da causa aqueles que constituem condições de validade da ação: o pedido, a causa de pedir e, de algum modo, também ao objeto, cuja existência torna o processo nulo.

            A falta de algum destes elementos, em regra manifestada na ineptidão da petição inicial, justifica, a recusa pela secretaria do tribunal do recebimento da petição.

Esta definição dos elementos essenciais da causa serve ainda para outros fins, nomeadamente para delimitar o efeito de caso julgado da sentença e para verificar se existe litispendência, bem como a determinação dos poderes dispositivos das partes e dos poderes de cognição do juiz no âmbito do processo.

            De entre os elementos do processo que considerei mais relevantes tendo em conta o programa da unidade curricular, destaco: os sujeitos, o objeto do processo, o pedido e a causa de pedir.

 

O sujeito

            O conceito de sujeito (de um processo de partes) está associado à construção da relação jurídica processual segundo um modelo de lide, em que avultam, como sujeitos ou partes principais (também ditas partes necessárias), as pessoas ou entidades que requerem e aquelas contra a qual é requerida a providência judiciária.

             Podem ainda ocorrer situações de pluralidade de partes que correspondem às figuras do litisconsórcio e da coligação.

 

O objeto do processo

objeto do processo, tradicionalmente, é referido no que respeita aos meios impugnatórios, não no sentido do objetivo imediato, como instância ou conteúdo da causa (definido pelo pedido e pela causa de pedir, que individualizam a pretensão deduzida em juízo), mas para designar o ato ou norma impugnados enquanto objeto mediato da decisão – isto é, o ente cuja validade se discute e que irá sofrer os efeitos da sentença anulatória ou declarativa da ilegalidade.

 

Tal compreendia-se perfeitamente quando o recurso de anulação era definido como um “processo feito a um ato”, mas não deixa de ter sentido mesmo quando se passa a entender as ações impugnatórias na perspetiva de uma controvérsia sobre uma relação jurídica (substancial), visando determinar a validade da pretensão administrativa de produção de certos efeitos por determinada forma, em função da lei e das posições jurídicas subjetivas por ela reconhecidas ao autor.

 

Na realidade, a existência de um ato ou de uma norma impugnáveis são um elemento necessário para que se possa lançar mão de um pedido impugnatório no âmbito de uma ação administrativa especial, constituindo, nessa medida, um elemento essencial desta forma de ação que também contribui para a definição e delimitação da causa.

 

Contextualização

O Professor Regente considera que o estudo do objeto do processo implica, necessariamente, uma ligação estreita entre o pedido e a causa de pedir, uma vez que a relação das partes no processo faz-se através de um pedido de direito que é justificado por facto concretos (que constituem a causa de pedir).

 

Ao longo da evolução do Direito Processual Administrativo, as questões relacionadas com o objeto do processo foram moldadas por experiências iniciais problemáticas. Por essa razão, como ensina o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva, é fundamental analisar os componentes que constituem o objeto – o pedido e a causa de pedir – e compreendê-los em conjunto, sem perder de vista as cicatrizes deixadas pela origem conturbada deste ramo do Direito.

Sabemos que muitas áreas do Direito Administrativo e do Contencioso Administrativo ainda apresentam traços de um passado problemático. Um exemplo disso é o objeto do processo, que, antes da reforma de 2004, era entendido como um “processo ao ato”, conforme mencionado pelo Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

A principal finalidade do objeto era garantir a máxima proteção possível aos particulares na defesa dos seus direitos, razão pela qual o processo administrativo seguia um modelo objetivista. Com essa abordagem, o que realmente importava para o direito não eram apenas as alegações das partes, mas todos os factos da realidade que o juiz pudesse investigar, de forma a determinar a legalidade de uma determinada atuação administrativa.

 

O pedido

pedido trata-se, nas palavras do professor Vieira de Andrade trata-se de uma pretensão do autor deduzida em juízo, cujo conteúdo há de relacionar-se com o litígio emergente de uma relação jurídico administrativa.

Assim, os pedidos podem ser:

·      Declarativos;

·      Condenatórios;

·      Constitutivos.

 

O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) admite a cumulação de pedidos que pode ser, quanto aos pedidos cumulados:

·      Simples, se o autor pretende a procedência de todos os pedidos e a produção de todos os efeitos;

·      Alternativa, quando o autor, embora intente a procedência de todos os pedidos, só pretende obter alguns dos efeitos, à escolha de outrem;

·      Subsidiária, quando o pedido subsidiário só é apresentado para a hipótese de improcedência do pedido especial.

 

A admissibilidade da cumulação de pedidos depende de uma relação material de conexão entre eles, avaliados nos temos estabelecidos no N.º1 do Art. 4.º, que identificam situações semelhantes às fixadas para a coligação: que a causa de pedir seja a mesma e única; que os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência (nomeadamente por respeitarem à mesma relação substancial); que, apesar de a causa de pedir ser diferente, a procedência dos pedidos dependa essencialmente dos mesmos factos ou das mesmas normas jurídicas.

 

            De acordo com o Professor Miguel Teixeira de Sousa, a cumulação simples depende ainda naturalmente da compatibilidade substancial entre os pedidos, nos termos da alínea c) do N.º2 do Art. 193.º do CPC.

 

Não obsta à cumulação a circunstância de os pedidos cumulados corresponderem a diferentes formas de processo (nesse caso, a forma da ação administrativa especial, com as adaptações necessárias – Art. 5.º, N.º1, CPTA), nem a de serem competentes para os conhecer tribunais diferentes, em razão da hierarquia ou do território (o tribunal competente será então o tribunal superior ou, no caso das competências territoriais, aquele que o autor escolher, salvo no caso de cumulação subsidiária, em que a ação deve ser proposta no tribunal competente para conhecer o pedido especial – Art. 21º, Nº1 e 2), desde que todos os pedidos pertençam ao âmbito próprio da jurisdição administrativa (é o que resulta do Art. 5º, Nº2, que determina a absolvição da instância quanto ao pedido que não pertença).

 

 

A causa de pedir

causa de pedir no processo é constituída pelos factos concretos e pelas razões de direito em que se baseia a pretensão e há de ser adequada a fundamentar cada ação em concreto, variando naturalmente em função dos pedidos.

 

No que respeita aos processos de impugnação de atos ou de normas, em que, em regra, se apresentam diversas causas de invalidade – pois que, para além do autor, o Ministério Público pode invocar vícios diferentes dos constantes da petição inicial e o próprio juiz pode e deve conhecer oficiosamente outros que eventualmente existam.

 

Na doutrina, discute-se se a causa de pedir é, então a invalidade do ato, em termos unitários ou se estamos perante um concurso de causas de pedir, tendo em conta que qualquer dos fundamentos é, por si, suscetível de conduzir à procedência da ação.

 

O Professor Vieira de Andrade considera que a invocação de vícios diversos implica a existência de várias causas de pedir que concorrem ou até se cumulam, designadamente quando os efeitos da procedência são qualitativamente distintos, na medida em que há causas de invalidade que impedem ou limitam a possibilidade de renovação do ato anulado e outras que não.

 

Com a tese objetivista, aquilo que relevava para o processo era a apreciação integral da atuação administrativa e, por isso, o tribunal não estava limitado às alegações das partes, podendo assim conhecer todo e qualquer facto relevante ao caso.  

À tese subjetivista, apesar de interessar o apuramento da legalidade da atuação administrativa, interessa a ligação entre a causa de pedir e o pedido e, por isso, o tribunal deve ter em conta apenas os factos alegados pelas partes que justificarão o pedido realizado (art.º 95º CPTA). 

 

O professor Regente explica que enquanto na tese objetivista se pressupunha a existência de uma “ilegalidade absoluta” por parte da administração, a subjetivista está relacionada com o direito subjetivo lesado pelo que se trata de uma “ilegalidade relativa.”

 

Além disto, podemos ainda defender esta segunda tese através do argumento de que obrigar a justiça administrativa a tecer juízos sobres todas as causas, que pudessem existir para cada caso, culminaria em maiores hipóteses de erro nas análises dos processos instituídos que, no fundo, revelaria um mau funcionamento do direito administrativo.

 

 

Conclusão

Por tudo o que foi exposto, considero relevante explorar a estreita conexão existente entre a causa de pedir e o pedido enquanto elementos do objeto do processo.

 

De forma geral, é possível afirmar que não é possível, num processo, separá-los e, dessa forma, coloco-me do lado da conceção subjetivista do objeto.

 

A Reforma do Contencioso Administrativo foi indispensável à plena instituição do Estado de Direito Democrático em Portugal pelo que foi o responsável pela renovação eficaz da abordagem ao objeto no processo.

 

Esta mudança facilitou a apreciação das questões levantadas em tribunal, ao afastar a noção de um pedido imediato e restringir as ações de impugnação dos atos administrativos. Além disso, garantiu a defesa dos direitos dos particulares que desejam apresentar as suas reclamações no processo.

 

 

 

 

 

 

Bibliografia:

  • Apontamentos das aulas teóricas do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva
  • CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, José - “A Justiça Administrativa: Lições, 10ª edição
  • ALMEIDA, Mário Aroso – “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2020
  • SILVA, Vasco Pereira – “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Ensaio sobre as ações no novo processo administrativo”, 2ª edição
  • Diário da República. (n.d.). Processo. Recuperado de https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/processo

 


Trabalho realizado por: Carolina Nunes da Silva

Subturma 6 - 66614

Thursday, October 17, 2024

Conceito e Organização dos Órgãos de Administração Pública

 

Introdução

Vem previsto no artigo 20º do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”), que um órgão da Administração Pública consiste num centro institucionalizado titular de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva.

Nesta exposição, procurarei desenvolver a forma de atuação e organização dos órgãos da Administração Pública, de modo a atingir um conhecimento mais profundo da matéria em causa. No fim, apresentarei ainda uma sucinta exposição relativa à natureza (e sua evolução), do conceito de órgão.

Organização da Administração Pública

No sentido orgânico, a Administração Pública é o sistema de órgãos, serviços e agentes do Estado e de outras entidades públicas que visam a satisfação regular e contínua das necessidades coletivas. Já no sentido material, a Administração Pública é a própria atividade desenvolvida por aqueles órgãos, serviços e agentes.

Considerando a sua natureza orgânica, é possível distinguir três grandes grupos de entidades na Administração Pública:

  1. Administração direta do Estado
  2. Administração indireta do Estado
  3. Administração Autónoma

A relação que estes grupos mantêm com o Governo, enquanto órgão supremo da Administração Pública, varia em intensidade e torna-se progressivamente mais distante. As entidades da Administração direta do Estado estão hierarquicamente subordinadas ao Governo (poder de direção), enquanto as entidades da Administração indireta do Estado estão sujeitas à superintendência e tutela do Governo (poderes de orientação, fiscalização e controlo). Já as entidades que integram a Administração Autónoma estão apenas sujeitas à tutela (poder de fiscalização e controlo).

1. Administração Direta

A Administração direta do Estado abrange todos os órgãos, serviços e agentes inseridos na pessoa coletiva do Estado que, de forma direta e imediata, sob a dependência hierárquica do Governo, desenvolvem atividades destinadas à satisfação das necessidades coletivas.

No entanto, nem todos os serviços da Administração direta do Estado têm a mesma competência territorial, distinguindo-se:

  • Serviços centrais
  • Serviços periféricos

Os serviços centrais têm competência em todo o território nacional, como as Direções-Gerais organizadas em Ministérios. Já os serviços periféricos têm competência limitada territorialmente, como as Direções Regionais (de Educação, de Agricultura, entre outras).

2. Administração Indireta

A Administração indireta do Estado compreende entidades públicas, distintas da pessoa coletiva "Estado", que possuem personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, dedicando-se ao desempenho de atividades administrativas que visam alcançar fins próprios do Estado. Chama-se administração "do Estado" porque prossegue finalidades públicas, e "indireta" porque esses fins são prosseguidos por entidades coletivas distintas do Estado.

A Administração indireta do Estado inclui três tipos de entidades:

a) Serviços personalizados

b) Fundos personalizados

c) Entidades públicas empresariais

Serviços personalizados são pessoas coletivas de natureza institucional, com personalidade jurídica, criadas pelo poder público para, de forma independente, exercerem funções próprias do Estado. Exemplos incluem o Instituto Nacional de Estatística, I.P., responsável pela promoção da informação estatística oficial, o Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., que promove a criação e qualidade do emprego, e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, I.P., que apoia o progresso da engenharia civil. Também se incluem aqui as Universidades públicas não fundacionais e os hospitais públicos não “empresarializados”.

Fundos personalizados são pessoas coletivas de direito público, com natureza patrimonial, instituídas para a prossecução de fins públicos específicos, como os Serviços Sociais das forças de segurança.

Entidades públicas empresariais são pessoas coletivas com natureza empresarial e fins lucrativos, que prestam bens ou serviços de interesse público, nas quais o Estado ou outras entidades públicas detêm a totalidade do capital. Exemplos incluem o Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE, e o Centro Hospitalar do Porto, EPE.

3. Administração Autónoma

A Administração Autónoma é o terceiro grande grupo de entidades da Administração Pública e é composta por entidades que prosseguem interesses próprios das populações que as constituem, determinando de forma autónoma a sua orientação e atividade. Estas entidades distribuem-se em três categorias:

a.        Administração Regional (autónoma)

b.       Administração Local (autónoma)

c.         Associações públicas

Estas entidades podem ter um substrato territorial, como no caso da Administração Regional e Local, ou associativo, como no caso das Associações públicas.

A Administração Regional (autónoma) segue um modelo organizacional semelhante à Administração direta e indireta do Estado, com uma divisão entre serviços centrais e periféricos, e também serviços personalizados, fundos personalizados e entidades públicas empresariais.

A diferença reside na competência territorial e material: enquanto a administração estadual tem competência sobre todo o território nacional, a administração regional apenas tem competências nas matérias de interesse das suas populações, desde que não sejam competências reservadas ao Estado (como a defesa nacional e as relações externas). Além disso, a sua competência limita-se ao território da respetiva região, nos termos da Constituição e dos Estatutos político-administrativos.

A Administração Local (autónoma) segue o mesmo modelo, sendo composta por serviços de administração direta (centrais e periféricos) e indireta (entidades públicas empresariais). As autarquias locais, que integram a Administração Local, são pessoas coletivas de base territorial, dotadas de órgãos representativos, com competências limitadas ao território da respetiva autarquia e às matérias que a lei lhes atribui.

Por fim, as Associações públicas são pessoas coletivas de natureza associativa, criadas pelo poder público, para promoverem interesses não lucrativos de um grupo de pessoas que se organizam para tal fim. Exemplos incluem as Ordens profissionais e as Câmaras dos Solicitadores, dos Despachantes Oficiais e dos Revisores Oficiais de Contas, que regulam e disciplinam o exercício das respetivas atividades profissionais.

 

Natureza – evolução histórica da natureza do conceito de Órgão da Administração Pública

A questão sobre qual a natureza dos órgãos no Direito Administrativo, para além de não ser um tema pacífico na doutrina, é uma definição que sofreu alterações ao longo do tempo. 

A teoria defendida pelo Professor Marcello Caetano sustenta que os órgãos são instituições, e não indivíduos. Para o professor, os órgãos são centros institucionalizados, operados por indivíduos em nome da pessoa coletiva, isto é, os indivíduos atuam como titulares de órgãos pertencentes a uma entidade coletiva. Nesta perspetiva, o órgão é um "feixe de competências", ou seja, um conjunto de atribuições, e há uma distinção clara entre o órgão – enquanto entidade institucionalizada – e o seu titular – o indivíduo que, de forma singular, representa o órgão ou que, em conjunto com outros, forma um colégio que liga o indivíduo ao órgão.

A segunda orientação, onde se inserem o Professor Afonso Queiró e o Professor Marques Guedes, defende que os órgãos são os próprios indivíduos. Esta teoria enfatiza a atividade administrativa em si, argumentando que os órgãos são, de facto, um conjunto de indivíduos que realizam atos administrativos. Para esta visão, o conjunto de poderes funcionais que a teoria anterior denominava de "órgão" corresponde, aqui, às competências. O órgão é, portanto, o próprio indivíduo. Não se trata de um centro de vontade ou de decisões: são os indivíduos que, ao atuarem em nome da pessoa coletiva, manifestam a sua vontade. Da mesma forma, enquanto centros de poderes funcionais não realizam atos ou omissões, são os indivíduos que agem.

O Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral não se alinha com nenhuma das teorias anteriores. Defende, por sua vez, que, no âmbito da teoria da organização administrativa – que se refere à estrutura da Administração Pública, à composição e funcionamento de um órgão, ou à designação dos seus titulares –, os órgãos devem ser entendidos como instituições. O que é relevante, nesta perspetiva, são as funções desempenhadas pelos órgãos, e não os indivíduos que as exercem.

Contudo, quando o foco é na atividade administrativa – que analisa quem toma decisões, pratica determinados atos, cumpre ou viola a lei –, o relevante é o indivíduo, e não o conceito abstrato de um centro de poderes funcionais.

Atualmente, esta matéria não surge tão fragmentada, devido ao artigo 20º do CPA (mencionado inicialmente), que estabeleceu que um órgão surge como centro institucionalizado titular de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva, pelo que para esta questão, podemos simplesmente responder com a letra da lei.



Trabalho realizado por: Mª Inês Costa Pinto, nº66426
2024/2025

A reforma do art. 476º do Código dos Contratos Públicos

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