Condenação da Ordem dos Advogados: Análise ao Acórdão TCAS
(Por violação de direitos fundamentais, liberdades e garantias de um advogado-estagiário)
Breve Introdução
No ano passado, foi proferido o douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 13 de abril de 2023, proc. n.º 1947/22.9BELSB, de que foi relator a Senhora Juiz Dora Lucas Neto, em coletivo com os Senhores Juízes Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira, relativamente à Ordem dos Advogados praticar um novo ato administrativo de classificação do exame escrito de um advogado-estagiário, Autor e Recorrente, de modo a substituir a classificação atribuída. Neste comentário, tomamos a liberdade de analisar os requisitos de admissibilidade desta ação de intimação, os pressupostos processuais da mesma, e ainda, avaliar brevemente a decisão de mérito.
Ação de intimação e Processos urgentes
No caso em apreço, foi intentada uma ação de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (cfr. Artigos 109.º a 111.º do CPTA) que, como salienta o Senhor Professor Mário de Aroso de Almeida, trata-se de um processo que tanto pode ser dirigido contra a Administração, como contra particulares, designadamente concessionários, visando impor tanto a adoção de uma conduta positiva como de uma conduta negativa, na primeira situação, e sendo caso disso, o juiz pode fixar um prazo para o cumprimento e o responsável pelo mesmo, podendo ainda impor o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória para o caso de incumprimento da intimação (cfr. Artigo 111.º/2 e 4)[1].
Estamos perante um processo urgente (cfr. Artigo 36.º/1, al. e), CPTA), de natureza excecional, aplicável às situações que carecem de e salvo a redundância, uma pronúncia da forma mais célere possível, que não se compadece com as delongas de um processo ordinário comum[2]. O CPTA prevê, no seu Título III, cinco tipos de situações em que, sem prejuízo da existência de outras que possam ser previstas em legislação especial (cfr. a ressalva no início do artigo 369.º/1), entende existir a necessidade de obter, com urgência, uma decisão de fundo sobre o mérito da causa. Estas cinco formas de processos têm por objeto as questões do contencioso eleitoral cuja apreciação é atribuída à jurisdição administrativa (artigo 98.º), os litígios respeitantes a procedimentos de massa (artigo 99.º) e a atos praticados no âmbito dos procedimentos de formação de certos tipos de contratos (artigos 100.º a 103.º-B) e os pedidos de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (artigos 104.º a 108.º) e para a proteção de direitos, liberdades e garantias (artigos 109.° a 111.º).[3]
Pressupostos da Ação de Intimação
Para aferir se o Tribunal tem competência para conhecer do mérito da causa, importa atentar ao artigo 4.º/1, al. a), ETAF, que incumbe à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais ou outros direitos e interesses legalmente protegidos.
De acordo com o artigo 44.º/1, 1.ª parte, ETAF, a jurisdição pertence aos Tribunais Administrativos de círculo. O artigo 20.º/5, CPTA, é a norma especial de competência territorial aplicável aos processos de intimação, que determina que esta deve ser instaurada no Tribunal da área onde deva ter lugar a ação ou omissão pretendidas.
Na hipótese de recurso de uma decisão que demonstrou ser desfavorável ao Requerente (como sucede no caso em estudo), o recurso é sempre possível, independentemente do valor da causa (cfr. Artigo 142.º/3, al. a), CPTA - desvio à regra geral do Artigo 142º/1)[4].
No que diz respeito à legitimidade processual, a regra geral prevista para a legitimidade ativa encontra-se prevista no artigo 9.º/1, CPTA (conjugando-o com o artigo 109.º/1, é conferida legitimidade ativa aos titulares de direitos, liberdades e garantias que demonstre ser objeto de lesão), segundo a qual o autor é considerado parte legítima quando alegue um sujeito da relação material controvertida.
Quanto à legitimidade passiva, esta cabe à Administração, que corresponde à contraparte da relação material controvertida (cfr. Artigo 10.º/1, CPTA). Contudo, para se apurar a regra especial aplicável ao caso concreto, há que proceder à delimitação da natureza da parte demandada aos autos, i.e., a Ordem dos Advogados[5]. Sendo esta uma associação pública profissional, esta encontra-se, por isso, sujeita a um regime de direito público. Por essa razão, e conforme o disposto no artigo 10.º/2 CPTA, podemos concluir que estamos perante uma parte legítima (passiva) no processo, e pode, concretizando, ser a Ordem dos Advogados, demandada.
A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias caracteriza-se como sendo um meio de defesa de direitos fundamentais e, por esse mesmo motivo, não está sujeita a qualquer tipo de prazo (cfr. Artigo 41.º/1, CPTA), devido à sua configuração específica na nossa ordem jurídica.
A admissibilidade do pedido de intimação passa necessariamente pelo preenchimento de determinados requisitos, previstos no artigo 109.º/1 CPTA, e passo a citar:
“A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”
No Acórdão em análise, o Tribunal considerou haver concretização suficiente para que se pudesse afirmar um justo receio de lesão de um direito fundamental, nomeadamente, o acesso à profissão, consagrado no artigo 47.º/1 da Constituição.
Ora, conforme escreveram os Senhores Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, a liberdade de escolha de profissão é:
“Um direito fundamental complexo, comportando vários componentes:, nomeadamente, não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão; não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos” e, ainda “uma das componentes comuns a todos os direitos, liberdades e garantias é o princípio da igualdade, não podendo haver discriminação no acesso às diversas profissões, por qualquer razão que seja”[6].
Decisão de Mérito
Do dispositivo da decisão de mérito, ficou a Ordem dos Advogados constituída da obrigação de praticar um novo ato administrativo de classificação do exame de agregação do Autor, para que dessa resulte a classificação de "Aprovado" e, consequentemente, a atribuição do título profissional de advogado.
Contrariamente à apreciação do Tribunal de primeira instância, decidiu o Tribunal ad quem que a correção do exame escrito do Requerente não se referia a uma competência discricionária técnica, mas a um ato vinculado, uma vez que foi a própria Ordem dos Advogados quem determinou os critérios uniformes de avaliação dos candidatos e as orientações de correção das provas e foi, simultaneamente, quem incumpriu essas mesmas normas de auto-vinculação administrativa.
Segundo o Senhor Professor Freitas do Amaral estamos perante um ato vinculado (praticados pela Administração no exercício de poderes vinculados) quando a lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada, contrapondo aos atos discricionários (praticados no exercício de poderes discricionários) que se caracterizam pelo seu exercício ficar entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em cada caso como mais ajustada à realização do interesse público protegido pela norma que o confere[7].
Concluindo, consideramos inequívoco que a lei processual administrativa preveja requisitos estritos que devem ser cumpridos pelo demandante para que este possa usufruir da ação de intimação prevista para direitos, liberdades e garantias, tendo em conta que a lei configura a intimação como um meio de tutela excecional e prevê outros meios processuais de tutela do direito de acesso à justiça, como é o caso das providências cautelares.
O sistema não pode tolerar abusos de litigância, principalmente, em sede de direitos fundamentais, atendendo ao atual cenário do Contencioso Administrativo e Fiscal, nem pode aceitar que os particulares exijam uma justiça rápida em qualquer situação, sabendo que pode haver sacrifício de provas ou do direito ao contraditório no caso dos processos urgentes. Por outro lado, é de congratular que se preveja, no processo judicial administrativo, uma ação como a intimação, que visa proporcionar uma reação rápida a casos de violação dos direitos, liberdades e garantias.
Diferentemente do Tribunal recorrido, considerou o Tribunal Central Administrativo-Sul, acertadamente, que o limite de liberdade na correção do exame escrito do Requerente estava limitado por um ato vinculado, emanado pela própria Ordem dos Advogados, que delimitou critérios de avaliação dos examinandos. Além disso, considerou, que o controlo jurisdicional dessa avaliação era legítimo por incidir sobre os limites externos da margem de liberdade que, violando a auto-vinculação, pertencem ao bloco da legalidade.
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Referências bibliográficas
· AROSO DE ALMEIDA, M. (2016). Manual de Processo Administrativo (Almedina, 2a ed.)
· AROSO DE ALMEIDA, M., & FERNANDES CADILHA, C. A. (2022). Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Almedina, Ed.; 5.a ed., Reimp.)
· CANOTILHO, J. G., & MOREIRA, V. (2007). Constituição da República Portuguesa Anotada I (C. Editora, Ed.; 4.a ed., pp. 652 e ss)
· FREITAS DO AMARAL, D. (2016) Curso de Direito Administrativo: Vol. II (Almedina, Ed.; 3a Edição)
· MARTINS, A. G. (2014). Os processos urgentes no anteprojeto de revisão do CPTA, Julgar - N.o23; Coimbra Editora. Acessível através do link: https://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/05/08-Ana-Gouveia-Martins.pdf
Jurisprudência citada
- Acórdão em análise: TCA-S, Proc. n.º 1947/22.9BELSB, de 13.04.2023, Relatora: Dora Lucas Neto, acessível aqui.
Legislação consultada
- Constituição da República Portuguesa (CRP).
- Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro.
- Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais (Lei-Quadro das Associações Públicas Profissionais), aprovado pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídicos de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais, acessível aqui.
Trabalho realizado por: Carina Roque Milhinhos
Subturma 6 - 66484
[1] ALMEIDA, Mário de Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed. Coimbra, Almedina, 2016.
[2] ANA GOUVEIA MARTINS, “Os processos urgentes no anteprojeto de revisão do CPTA”.
[3] ALMEIDA, Mário de Aroso, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed. Coimbra, Almedina, 2016.
[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
[5] A OA é uma associação pública profissional de estrutura associativa representativa da profissão de advogado, nos termos previstos no artigo 2.º do Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais, aprovado pela Lei n.º 12/2013, de 10 de janeiro. É uma pessoa coletiva de direito público e integra a Administração Autónoma do Estado. Neste sentido, está sujeita à intervenção da tutela do Governo e ao poder de fiscalização da sua atividade com fundamento na ilegalidade. Assim, nos processos intentados contra entidades públicas, aplica-se o artigo 10.º/2, CPTA, que fixa que seja demandada a pessoa coletiva de direito público.
[6] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 652 e ss.
[7] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 3.ª edição, 2016, Almedina, Coimbra, pp. 65-86