Thursday, December 12, 2024

A reforma do art. 476º do Código dos Contratos Públicos

A reforma do art. 476º do Código dos Contratos Públicos

  • Introdução: 

A revisão do Código dos Contratos Públicos (CCP) trouxe alterações significativas às regras aplicáveis aos recursos das decisões arbitrais em litígios pré-contratuais e arbitragens contratuais. O novo art. 476.º do CCP introduz uma abordagem que suscita várias questões jurídicas. Esta revisão, implementada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, estabelece no n.º 5 do artigo 476.º que, “nos litígios de valor superior a 500.000 €, é admissível recurso da decisão arbitral para o tribunal administrativo competente, nos termos da lei, com efeito meramente devolutivo”. 

A doutrina maioritária interpreta este preceito como uma tentativa de restabelecer o direito ao recurso, suprimido na revisão do CPTA de 2015. Esta interpretação baseia-se no facto de que, além da previsão já existente no art. 185.º-A do CPTA, introduzido pela revisão de 2015 - que revogou o artigo 186.º/N.º 2, onde se dispunha que “as decisões proferidas por tribunal arbitral também podem ser objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo, nos moldes em que a lei sobre arbitragem voluntária prevê o recurso para o Tribunal da Relação, quando o tribunal não tenha decidido segundo a equidade” -, o novo preceito parece recuperar essa faculdade de recorrer.

É relevante assinalar que o passo legislativo dado em 2017 se enquadra no contexto de uma revolução arbitral no Direito Público, caracterizada por desenvolvimentos expressivos nos últimos anos. Por um lado, o legislador buscou fortalecer a arbitragem administrativa institucionalizada; por outro, restringiu a arbitragem administrativa realizada por tribunais ad hoc. Adicionalmente, até um passado recente, havia sérias dificuldades em harmonizar as soluções normativas do CCP com a legislação processual administrativa vigente até a revisão de 2019. Mais relevante ainda é a sensibilidade jurídica demonstrada por essas disposições do CCP quando analisadas sob a ótica da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do Direito da União Europeia (DUE). Todavia, como será analisado, a revisão de 2019 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos contribuiu, ao menos em parte, para solucionar este problema de índole constitucional. Deste modo, passaremos a uma análise crítica do regime previsto no artigo 467.º do CCP.

Antes de nos concentrarmos na análise detalhada dos vários números do artigo 476.º, é necessário abordar três notas gerais que permitem compreender, em linhas gerais, o novo regime. Em primeiro lugar, é essencial destacar que, no contexto da arbitragem prevista no CCP, o âmbito temático ultrapassa os limites dos atos pré-contratuais. O teor literal do n.º 1 do artigo 476.º é claro a esse respeito, ao dispor que podem ser submetidos a arbitragem “litígios emergentes de procedimentos ou contratos aos quais se aplique o presente Código”. Essa solução não é propriamente inovadora, já que, através do CPTA, a arbitrabilidade de questões relacionadas a contratos – incluindo a invalidação de atos de execução – e, desde 2015, a arbitrabilidade de atos administrativos pré-contratuais (cf. artigo 180.º, n.º 3), são amplamente aceites. Com a revisão do CCP em 2017, o legislador limitou-se a reiterar, no essencial, a abordagem já consagrada na legislação processual administrativa quanto aos tipos de matérias arbitráveis.

Para além disso, merece destaque a ênfase na arbitragem necessária e institucionalizada, já apontada no início deste texto. Esta preferência decorre dos números 2 e 3 do artigo 476.º do CCP. Especificamente, no atual regime, o legislador favorece a arbitragem necessária em detrimento da arbitragem facultativa, ao permitir que as entidades adjudicantes optem por submeter os litígios referidos ao mecanismo arbitral. Essa opção acaba por obrigar um amplo conjunto de sujeitos – como os interessados, candidatos, concorrentes e cocontratantes – a aceitar essa modalidade de resolução de conflitos. Em suma, ao facultar essa escolha às entidades adjudicantes, o legislador viabiliza a imposição de arbitragem para litígios pré-contratuais e contratuais. Contudo, essa preferência não se limita à arbitragem necessária: há também uma clara aposta na arbitragem institucionalizada, ou seja, na resolução de litígios por tribunais integrados em centros de arbitragem institucionalizada. Isso é evidente pela interpretação do n.º 3 do artigo 476.º, que restringe a resolução de litígios por tribunais arbitrais fora de centros de arbitragem institucionalizada.

Relativamente a essa aposta na arbitragem necessária e institucionalizada, surgem algumas divergências doutrinárias em relação ao Anteprojeto. Uma das posições defende que a arbitragem institucionalizada, preferencialmente acolhida pelo CCP, é necessária não pela imposição direta da lei, mas porque esta permite que as entidades adjudicantes, ao tomarem essa decisão, a tornem obrigatória. Em outras palavras, é por meio de uma decisão administrativa que essa imposição se concretiza, eliminando a possibilidade de se falar em arbitragem voluntária, no sentido estrito de um mecanismo consensual entre as partes. O Professor João Miranda aborda a questão, mas manifesta maior preocupação com a ausência de critérios claros estabelecidos pelo legislador para orientar as entidades adjudicantes na escolha entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais.

O CCP não se limita a permitir a escolha da arbitragem. Com base nas disposições do art. 476.º/N.º 2, alíneas a) e b), a entidade adjudicante tem o poder de, de forma unilateral, definir o centro de arbitragem onde serão resolvidos os litígios com os interessados, candidatos, concorrentes ou cocontratantes. Além disso, cabe-lhe decidir sobre a constituição do tribunal arbitral e o regime processual aplicável, conforme a alínea c) do mesmo artigo. Classificar de "facultativa" uma arbitragem que se desenvolve nestas condições não é juridicamente correto. Na realidade, a única vontade que conta é a da entidade adjudicante, sendo dispensada a manifestação de vontade dos outros intervenientes. Se a entidade adjudicante assim o decidir, a arbitragem torna-se obrigatória, acontecendo num tribunal integrado no centro que ela escolher e seguindo as regras que ela mesma determinar, em função da sua opção pelo centro de arbitragem. Esse caráter inovador levanta questões importantes relacionadas com o direito de acesso aos tribunais e com o princípio da tutela jurisdicional efetiva. 

Ora, de uma forma mais geral, destaca-se que, como tem sido apontado pela doutrina, o legislador não privilegia a arbitragem em detrimento do recurso aos tribunais administrativos estaduais. O que é permitido, sem imposição de obrigatoriedade, é que as entidades adjudicantes possam optar por resolver os litígios relacionados com procedimentos e contratos regidos pelo CCP por meio da arbitragem. No entanto, sendo uma decisão administrativa que afeta um direito fundamental - o direito de acesso aos tribunais estaduais -, esta deverá ser sempre devidamente fundamentada, conforme os requisitos gerais estabelecidos no art. 152.º/N.º 1, alínea a) do Código do Procedimento Administrativo. 

  • Considerações dos particulares

No que diz respeito às considerações dos particulares, ao analisar o número 2, percebe-se uma diferença importante entre a alínea a), que aborda potenciais litígios pré-contratuais, e a alínea b), que foca os litígios contratuais. De acordo com a alínea a), sempre que a entidade adjudicante optar pela arbitragem, esta deve ser obrigatoriamente prevista nas peças do procedimento. Para facilitar este processo, o legislador antecipa a anuência para um momento anterior ao surgimento de qualquer litígio, tratando-a como uma condição de participação no procedimento.

    Quanto à alínea b), a necessidade de aceitação da jurisdição de um centro de arbitragem institucionalizada tem uma incidência subjetiva (relacionada ao cocontratante) e objetiva (referente à resolução de conflitos contratuais). Assim, também aqui, a aceitação deve ser expressa nos termos do modelo previsto.

    Já a alínea c) traz uma disposição inédita no Anteprojeto. Este preceito cria uma nova obrigação para a entidade adjudicante, sempre que opte pela arbitragem: ela deve estabelecer, de forma imediata, o modo de constituição do tribunal e o regime processual aplicável. Essa previsão é feita por remissão para "as normas de regulamento do centro de arbitragem institucionalizado competente", escolhido pela entidade. Mais uma vez, é invocado o modelo previsto no anexo XII do CCP

O artigo 476.º/N.º 3, do CCP aborda a arbitragem administrativa não institucionalizada, ou seja, a resolução de litígios por tribunais arbitrais ad hoc. O legislador demonstra certa desconfiança em relação a este tipo de arbitragem, algo que se percebe implicitamente na solução apresentada. Por esse motivo, a utilização de tribunais arbitrais ad hoc para resolver litígios relativos a procedimentos ou contratos abrangidos pelo CCP é admitida apenas de forma excecional. Tal possibilidade depende da verificação de uma das situações previstas nas quatro alíneas do artigo 476.º/N.º 3, que devem ser devidamente consideradas.

  • Situações elencadas no número 3 do art. 476.º

Relativamente aos cenários i) e ii) mencionados na alínea a) do n.º 3 do artigo 476.º do CCP, observa-se que, até à revisão de 2017, a arbitragem não institucionalizada era utilizada sobretudo em litígios contratuais que envolvessem elevada complexidade técnica e jurídica, bem como uma expressão económica significativa. Por essa razão, entende-se, num exercício de previsão, que esses critérios continuarão a servir de base para justificar a resolução de litígios por meio de arbitragem em tribunais não integrados em centros de arbitragem institucionalizada. Quanto ao cenário iii), se não houver um centro de arbitragem institucionalizada competente na matéria e o recurso aos tribunais estaduais não for viável, os litígios terão necessariamente de ser resolvidos por um tribunal arbitral ad hoc

Já a alínea b) permite que se recorra a tribunais arbitrais fora de centros de arbitragem institucionalizada “quando o processo arbitral previsto nos regulamentos do respetivo centro de arbitragem institucionalizado não se conforme com o regime de urgência previsto no Código de Processo nos Tribunais Administrativos para os contratos por ele abrangidos.” Apesar de a redação legal poder gerar algumas ambiguidades, parece claro que o âmbito de aplicação desta alínea se restringe a situações em que a entidade adjudicante tenha inicialmente optado por um centro de arbitragem institucionalizada, mas posteriormente se verifique que o litígio não pode ser resolvido por um tribunal integrado nesse centro devido a incompatibilidades entre o regulamento processual do centro e o regime de urgência estabelecido no CPTA para o contencioso pré-contratual.

  • Alíneas c) e d) do art. 476.º/N.º 3

Por fim, as alíneas c) e d) estabelecem que a resolução de litígios por meio de arbitragem em tribunais arbitrais não integrados em centros de arbitragem institucionalizada depende de uma justificação específica. 

Na alínea c), exige-se uma demonstração quanto à duração do processo arbitral em um centro de arbitragem institucionalizada. Caso fique comprovado que a resolução do litígio por um tribunal integrado em tal centro levaria mais tempo do que a resolução no âmbito de um tribunal arbitral ad hoc, a opção pode recair sobre este último modelo de arbitragem, não institucionalizada.

Já a alínea d) refere-se a uma demonstração relativa aos custos associados ao uso de um centro de arbitragem institucionalizada. Se for evidenciado que os gastos com este tipo de arbitragem seriam superiores aos previstos para a resolução do litígio por um tribunal arbitral ad hoc, a escolha poderá recair sobre este modelo de arbitragem.

Em ambos os casos, tratam-se de hipóteses de aplicação residual, que apresentam desafios probatórios consideráveis. É difícil comprovar que a resolução em um tribunal arbitral institucionalizado resultaria em maior demora (alínea c) ou que implicaria custos mais elevados para as entidades adjudicantes ou contratantes públicos (alínea d). 

  • Número 4 e 5 do art. 476.º do CCP: 

Contudo, para além do significado imediato que se depreende do texto do preceito – que remete, não para a LAV diretamente, mas de forma mais geral para os “termos da lei” (e nem mesmo para os “casos e termos da lei”) –, existem argumentos sólidos que se opõem a essa interpretação.

A análise histórica não legitima tal leitura. É relevante recordar que a introdução do artigo 476.º/N.º 5, do CCP revisado ocorreu num cenário onde se acumulavam críticas doutrinárias à irreversibilidade das decisões arbitrais em matéria administrativa e à ausência de disposições específicas para arbitragens envolvendo entidades públicas. Essas disposições deveriam prever mecanismos que equilibrassem a expansão da arbitrabilidade administrativa com uma maior possibilidade de recorrer dessas decisões aos tribunais judiciais.

Ademais, caso essa “interpretação distinta” fosse válida, seria difícil justificar por que, em arbitragens administrativas – que, em certas perspetivas, podem ser entendidas como impostas pela entidade adjudicante ou contratante público –, se rejeitaria a aplicação do princípio geral que permite às partes, por meio de convenção arbitral, prever a possibilidade de recurso. Essa exclusão seria especialmente marcante em litígios com valor igual ou inferior a 500.000 € (ou até 10.000.000 €, segundo o que previa o Anteprojeto), contrariando de maneira inédita o artigo 39.º/Nº 4, da LAV.

Ainda no âmbito do enquadramento, importa sublinhar que a norma legal não faz distinção entre decisões proferidas por tribunais arbitrais ad hoc e aquelas emanadas de tribunais arbitrais pertencentes a centros de arbitragem institucionalizada. Assim, deve-se concluir que a nova solução é aplicável, independentemente do tipo de tribunal arbitral que tenha emitido a decisão

  • Constitucionalidade do art. 476.º/N.º 5 do CCP

Não se pode argumentar que a constitucionalidade do disposto no n.º 5 do artigo 476.º - que, como se verá, é organicamente inconstitucional - possa ser preservada mediante uma interpretação conforme à Constituição. Certamente, a invalidez da norma não decorre de uma "falha normativa" que possa ser corrigida por uma interpretação jurídica. 

Contudo, como alerta José Lamego, num Estado democrático fundamentado no princípio da separação de poderes, é questionável justificar abordagens metodológicas que vão além de uma análise reflexiva – mesmo que se corrija o sentido literal da norma – para reconfigurar o próprio propósito da legislação. De fato, “a interpretação conforme à Constituição não autoriza um monismo metodológico, que priorize de forma absoluta a conformidade constitucional em detrimento de outros métodos”. Pelo contrário, esse princípio deve ser aplicado “de acordo com o método”, e não deve permitir que a interpretação ajustada se converta, mesmo que apenas no caso concreto, em uma modificação real e própria da norma analisada. 

No caso em questão, como já mencionado, existem argumentos sólidos que evidenciam a clara intenção por trás do disposto no artigo 476.º/N.º 5, do CCP revisado. Por essa razão, qualquer eventual inconstitucionalidade da solução adotada não pode ser corrigida por meio de uma interpretação conforme à Constituição.

O recurso previsto no artigo é efetivamente um recurso jurisdicional, distinto da ação de anulação prevista no artigo 46.º da LAV. A utilização explícita do termo "recurso" não deixa dúvidas, indicando que o CCP remete a regulamentação deste instrumento de impugnação jurisdicional para os "termos da lei", ou seja, para o CPTA. Tudo indica que o legislador teve em mente o recurso ordinário de apelação, regulado de forma independente no artigo 149.º do CPTA.

O tribunal responsável por julgar esse recurso será o tribunal central administrativo competente de acordo com o critério territorial. Contudo, há uma particularidade em que o legislador do CCP se desviou expressamente da regra geral prevista no artigo 143.º/N.º 1, do CPTA: o efeito do recurso. De acordo com o artigo 476.º/N.º 5, in fine, do CCP, o recurso terá apenas efeito devolutivo em relação à decisão recorrida.

  • Equiparação a sentenças de primeira instância

De início, considerando que as decisões arbitrais são simplesmente "equiparadas a sentenças dos tribunais de primeira instância", entende-se que, ao determinar que "cabe recurso (...) nos termos da lei", o legislador remete para o recurso ordinário de apelação. Esse recurso concede ao tribunal central administrativo amplos poderes, conforme previsto no artigo 149.º do CPTA. A apelação, inclusive, possibilita que os tribunais centrais administrativos reavaliem a matéria de facto.

Ademais, além do recurso extraordinário de revisão, o artigo 476.º/N.º 5, não exclui a possibilidade de outros recursos previstos no CPTA. Isso inclui a revista per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo e o recurso de revista, nos casos estabelecidos no artigo 150.º. Em suma, a admissibilidade de uma decisão arbitral para revista dependerá do cumprimento dos requisitos de recorribilidade previstos na lei

  • O novo regime: 

Alguns autores minimizam a relevância do novo regime consagrado no artigo 476.º do CCP revisado. Aparentemente, o regime atual seria apenas um desdobramento do CPTA, sem abordar questões de "organização e competência" de tribunais arbitrais em matéria administrativa, já reguladas pelo próprio CPTA e outras normas legais. No entanto, o Professor Rui Medeiros rejeita essa interpretação redutora. Para ele, o n.º 5 do artigo 476.º do CCP representa uma inovação substancial, que contraria tendências legislativas anteriores e adentra um domínio constitucionalmente sensível, exigindo reflexão criteriosa do legislador democraticamente legitimado.

Nesse contexto, é importante ressaltar a difícil compatibilidade entre duas soluções legais: o artigo 180.º/N.º 3, do CPTA (após a revisão de 2015) e o regime do CCP. Aqui, operam dois regimes distintos:

  • O CPTA sem regime de arbitragem necessária: o artigo 476.º/N.º 2, do CCP consagra uma arbitragem necessária, desde que a entidade adjudicante opte por essa via. Trata-se, contudo, de uma abordagem atípica; 

  • O regime anterior a 2019 do CPTA: em matéria de arbitragem envolvendo atos pré-contratuais, este pressupunha arbitragem não institucionalizada. Em contraste, o CCP favorece expressamente a arbitragem institucionalizada.

Quanto ao primeiro ponto de divergência, já foi analisada a escolha explícita do CCP em sua codificação mais recente. Relativamente à solução adotada pelo CPTA na revisão de 2015, merece destaque o artigo 180.º/N.º 3. Deve ser estabelecido em conformidade com o regime de urgência previsto no presente Código para o contencioso pré-contratual. 

  • Relação de compatibilidade

Mais do que uma dificuldade de relação compatibilidade - hoje aparentemente superada - entre o regime do CPTA e o do CCP, pode-se estar diante de uma verdadeira desconformidade juridicamente relevante entre a solução normativa do CCP e o Direito da União Europeia. Essa desconformidade decorre, essencialmente, do condicionamento imposto à aceitação da arbitragem como requisito para participação em procedimentos pré-contratuais. Apenas os interessados que aceitem expressamente a determinação da entidade adjudicante quanto à resolução de litígios por meio de arbitragem institucionalizada podem participar do procedimento

Conforme evidenciado ao longo deste texto, a arbitragem em matéria pré-contratual e contratual pública passou por mudanças significativas com a introdução do art. 476.º do CCP. No entanto, essas alterações nem sempre são facilmente compreensíveis à luz do percurso legislativo previamente trilhado em matéria de arbitragem administrativa, especialmente desde a revisão de 2015. Fica evidente que, em alguns aspectos, o legislador buscou, de forma deliberada, solucionar no CCP problemas que vinham sendo apontados à arbitragem administrativa.

Entretanto, a solução apresentada no CCP gerou novas dificuldades, sobretudo pela opção de uma regulação isolada para a arbitragem nos diferendos procedimentais e contratuais abrangidos por essa codificação. Um exemplo emblemático é o disposto no art. 476.º/N.º 5, do CCP, que prevê o direito ao recurso apenas em casos específicos, limitando-o a litígios de valor superior a €500 000.

A revisão de 2019 tentou enfrentar as dificuldades de compatibilização entre o CCP e o CPTA, além de abordar preocupações constitucionais relevantes. Uma das principais questões foi justamente a delimitação desse direito ao recurso, que levantou debates sobre a adequação da solução às exigências de tutela jurisdicional efetiva e proporcionalidade. 

Em vez de um tratamento legislativo fragmentado, como tem ocorrido até agora, seria mais adequado adotar um diploma legal específico dedicado exclusivamente à arbitragem administrativa voluntária.. Efetivamente, mais do que passos isolados, em direções nem sempre coincidentes, dispersos por diplomas legais, o que se afigura necessário, no domínio da arbitragem administrativa voluntária, é uma reflexão de fundo, e projeção de futuro marcadamente unificada. É o que se propugna, de modo a evitar que o quadro legislativo em matéria de arbitragem administrativa se torne progressivamente mais complexo e de difícil compatibilização quanto às peças normativas fundamentais. 

  • Conclusão: 

Com base nos elementos analisados, é possível concluir que o tema em questão destaca a complexidade e a relevância de uma interpretação correta e aplicação das normas jurídicas, especialmente no que toca ao equilíbrio entre os direitos individuais e as exigências da ordem pública. A reflexão sobre a jurisprudência e as nuances legais envolvidas demonstrou a importância de ajustar as leis à realidade social e ao contexto económico, sempre tendo em conta os princípios constitucionais que garantem a proteção dos direitos fundamentais. 

A análise aprofundada das diversas perspectivas jurídicas, juntamente com um exame crítico das decisões judiciais, revela que o entendimento da matéria, embora não livre de controvérsias, caminha para reforçar a justiça e a equidade. Assim, fica claro que, embora o direito não seja uma ciência exata, é fundamental a constante atualização e reflexão sobre as suas implicações práticas, a fim de assegurar que as normas evoluam conforme as necessidades contemporâneas.

Portanto, o estudo deste tema não só oferece uma visão clara sobre as questões jurídicas centrais, mas também destaca a necessidade de um esforço contínuo por parte dos operadores do direito para adaptar e interpretar as normas de maneira justa e eficaz, garantindo o bem-estar coletivo e o respeito aos direitos individuais. 










  • Bibliografia: 

  •  CALDEIRA Marco, SERRÃO Tiago, PEDRO Ricardo, AMADO GOMES Carla - ‘’Comentários ao Código dos Contratos Públicos’’, Vol. II, 4.ª edição, AAFDL Editora, 2021, págs. 837-871; 

  • MEDEIROS, Rui, Regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto - uma reflexão constitucional; 

  • FONSECA, Isabel Celeste M., A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro?, in A arbitragem administrativa e tributária – problemas e desafios, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 159 ss; 

  • SILVEIRA, João Tiago, ‘’ A arbitragem e o artigo 476.º na revisão do CCP, in RDA, 1 (2018), pág. 63; 

  • MEDEIROS, Rui, A decisão de inconstitucionalidade – os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, Lisboa: UCE, 1999.


Francisca Santos,

N.º 66335.

O Efeito Borboleta da Anulação Administrativa de Atos: Sobre a tutela da confiança dos particulares

 I.                 Introdução

 

A temática da anulação administrativa de atos adquire especial relevância no contexto de um Estado de Direito, que tem como um dos seus pilares fundamentais o Princípio da Legalidade. Este princípio exige, por sua vez, que a Administração Pública atue sempre em conformidade com a lei, subordinando-se a esta. Desde modo, o Princípio da Legalidade assume-se como simultaneamente um limite à atuação administrativa e uma garantia de justiça para os particulares, uma vez que limita os seus poderes e garante a proteção dos direitos dos cidadãos.

Pela circunstância de que a anulação de atos administrativos interfere com a estabilidade das relações jurídicas e na previsibilidade das ações administrativas, há uma verdadeira necessidade de ponderação entre a necessidade de anulação e a proteção de terceiros. No ordenamento jurídico português, é configurado, de forma clara, a titularidade dos particulares de posições jurídicas de conteúdo substantivo perante os poderes públicos e, em particular, perante a Administração. Nesse sentido, resulta que os particulares podem ser titulares de direitos subjetivos e de interesses legalmente protegidos. E é no respeito por estes que a atuação administrativa se deve desenvolver, ou seja, no sentido da prossecução do interesse público, de acordo com o artigo 266.º CRP, e, é com base na defesa desses mesmos direitos, que se reconhece aos titulares o direito de participarem na formação das decisões administrativas que a eles dizem respeito (segundo o artigo 267.ºCRP) e, em caso disso, lançarem mão da tutela que é proporcionada pela jurisdição dos tribunais administrativos para a defesa dos mesmos.

Deste modo, o presente post propõe-se, fundamentadamente, abordar a questão sobre como a anulação administrativa pode desencadear um “efeito borboleta” de consequências imprevisíveis aos particulares. Pretende, sobretudo, realçar a importância de assegurar a proteção da confiança dos cidadãos, quando atuam com base nesses mesmos atos, como elemento crucial para alcançar um equilíbrio entre o respeito pelo Princípio da Legalidade e o Princípio da Segurança Jurídica. A proteção da confiança constitui, neste contexto, um mecanismo fundamental para equilibrar os poderes da Administração Pública com os direitos e interesses dos particulares, evitando que a instabilidade criada pela anulação administrativa de atos administrativos resulte em danos/prejuízos irreparáveis ou extremamente onerosos para estes.

Cabe agora, sim, dizer que, anular um ato administrativo, nada mais é do que destruir os efeitos jurídicos por este produzido, com causa em invalidade, segundo o que nos diz o artigo 165.º do CPA. De modo sumário, esta pode ser tanto administrativa, quando seja concretizada por ato praticado por órgão administrativo, como judicial, quando concretizada por decisão de um tribunal. Pode também ser oficiosa ou requerida, consoante a iniciativa da anulação decorra de órgão competente, ou seja, solicitada por um particular interessado. Estes últimos podem requerer a anulação perante a própria Administração ou perante o tribunal administrativo competente, dentro dos prazos estabelecidos pela lei, segundo o art 163.º CPA.

De acordo com o professor MARIO AROSO DE ALMEIDA, o ato administrativo, funciona como um «instrumento de rápida e estável definição das situações jurídicas, no interesse da segurança jurídica e, em especial, da confiança dos interessados na constituição de posições de vantagens». Portanto, continua a ser um instrumento imprescindível de atuação das autoridades administrativas na tomada de decisões que dão resposta a pretensões individuais ou envolvem intervenções pontuais na esfera de terceiros (qualificação não totalmente rigorosa), sejam eles públicas ou privadas.

Uma vez anulado, os efeitos dos atos são destruídos retroativamente e a Administração fica constituída no dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, bem como e dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento naquele mesmo ato. Até ser anulado, o ato anulável produz efeitos jurídicos, até estes serem destruídos com eficácia retroativa, por anulação administrativo ou judicial. Referir que, a anulação deve revestir a forma legalmente prescrita para o ato revogado ou anulado.

 

II.               Evolução histórica

 

A revogação de atos administrativos inválidos, outrora designada como revogação anulatória, foi objeto de significativas alterações ao longo da evolução do regime jurídico-administrativo em Portugal. Sob a égide do Código do Procedimento Administrativo de 1991, vigorava a ideia de que os atos administrativos inválidos se tornavam insuscetíveis de revogação uma vez decorrido o prazo do recurso contencioso. Este entendimento baseava-se no pressuposto de que o decurso desse prazo operava a convalidação da invalidade do ato, transformando-o em ato válido, que não poderia mais ser revogado com fundamento na irregularidade que anteriormente apresentava.

Nesse contexto, a irrevogabilidade dos atos constitutivos de direitos fundamentava-se essencialmente na tutela do princípio da legalidade, e não propriamente no princípio da tutela da confiança. Ou seja, a proteção conferida a tais atos visava assegurar o respeito pela estabilidade e certeza jurídicas, independentemente da confiança que os beneficiários pudessem ter depositado na validade desses atos.

A reforma do Código do Procedimento Administrativo veio, contudo, introduzir mudanças relevantes nesse regime, promovendo uma maior flexibilidade e adequação às exigências contemporâneas de justiça administrativa. Passou a admitir-se, mesmo após o decurso do prazo de impugnação, a anulação de atos administrativos favoráveis cujos beneficiários tenham utilizado de forma abusiva ou ilegítima, não podendo, assim, invocar a proteção da confiança. Este novo paradigma reflete uma ponderação mais equilibrada entre os princípios da juridicidade, da tutela da confiança e da proporcionalidade.

Outra inovação crucial introduzida pela reforma foi a consagração expressa do direito à tutela indemnizatória para os beneficiários que, sem culpa, confiaram na manutenção de um ato administrativo ilegal na ordem jurídica. Esta proteção visa compensar os danos causados pela anulação do ato, assegurando um equilíbrio entre a necessidade de correção de atos administrativos inválidos e a proteção dos direitos e expectativas legítimas dos particulares.

Adicionalmente, a reforma flexibilizou os efeitos temporais da anulação de atos administrativos, permitindo que, em certos casos, esta produza efeitos apenas para o futuro. Essa medida é particularmente relevante para os atos que se tornaram impugnáveis ou in()impugnáveis por via jurisdicional, reconhecendo a necessidade de adaptar a resposta jurídica às especificidades de cada situação concreta, mitigando os impactos disruptivos que poderiam advir de uma anulação com efeitos retroativos.

Com estas alterações, o ordenamento jurídico-administrativo português evoluiu no sentido de uma maior harmonização entre a segurança jurídica, a justiça e a eficácia da Administração Pública.

 

III.             Eficácia interna e Eficácia externa do ato administrativo

 

A eficácia, prende-se às consequências jurídicas dos atos administrativos. É crucial fazer a distinção entre eficácia externa e interna do ato.

A eficácia externa refere-se aos efeitos externos que se produzem como resultado da fase integrativa da eficácia do procedimento administrativo e implica que o ato se torne uma realidade jurídica que deve ser considerada pelo destinatário. É a partir dessa eficácia que se cria e estabelece a relação jurídica entre a administração e o particular, gerando as consequências jurídicas associadas à prática do ato administrativo. Como exemplo, destaca-se a possibilidade de a Administração anular os seus próprios atos, ou a definição do momento a partir do qual o ato se torna (in)impugnável, tanto administrativa como contenciosamente.

É importante ressaltar que a eficácia jurídica externa é um pressuposto da executoriedade do ato administrativo, mas não deverá ser confundida com esta. A eficácia não implica, necessariamente, a entrada em vigor dos efeitos jurídicos do ato, mas constitui um pressuposto jurídico para tal.

Por outro lado, a eficácia interna do ato está relacionada com a força vinculativa do conteúdo regulador do ato administrativo. Diz respeito à eficácia material e reguladora do ato, que se manifesta na obrigatoriedade jurídica imposta pelo seu conteúdo regulador como condição para a sua existência.

Geralmente, estes dois tipos de eficácia jurídica produzem-se, simultaneamente, com a notificação ou publicação do ato administrativo. Contudo, há exceções. É o que acontece quando o ato administrativo está sujeito a condição ou termo, verifica-se que o ato possui eficácia interna, mas carece de eficácia externa. Isso acontece porque o seu conteúdo ainda não é vinculativo, dado que os efeitos jurídico-materiais e a regulação prevista pelo ato ainda não foram produzidos. 

A distinção entre os dois tipos de eficácia é essencial. Um ato administrativo é considerado (in)impugnável não pela inexistência de eficácia externa, mas sim pela falta de eficácia externa. Todavia, sustenta-se que a norma que estabelece um momento diferente da notificação ou publicação para o início da produção de efeitos jurídicos faz parte do próprio conteúdo material e regulador do ato administrativo, de forma que o momento em que se produziriam os dois tipos de eficácia seria precisamente o mesmo. Já no caso dos atos nulos, estes podem ser eficazes no plano externo (desde que devidamente notificados), mas nunca alcançarão eficácia interna, uma vez que a sua nulidade impede que adquiram qualquer força vinculativa ou capacidade reguladora no âmbito jurídico.

 

IV.             Natureza do poder de anulação administrativa: Poder vinculado ou discricionário?

 

Esta é uma questão que gera bastante controvérsia. Por um lado, há quem sustente que a anulação é um poder discricionário; há quem entenda, por outro, que é um poder vinculado e, ainda, surge .um terceiro grupo de opiniões que entende ser um poder vinculado à juridicidade. Esta é uma questão relevante no sentido em que a problemática da natureza da anulação administrativa de atos administrativos, depende do entendimento que se adote quando ao próprio sentido da vinculação Administração Pública para com o Direito, considerando o princípio da juridicidade.

Em primeiro lugar, considerando a letra da lei, parece resultar do artigo 168.º CPA a intenção do legislador no sentido de não reconhecer uma obrigação estritamente vinculada da anulação. Este entendimento, decorre, essencialmente, na escolha de palavras feita pelo legislador, tendo sido preferido a utilização do verbo “poder”, em vez de “dever” ou de “ter de ser”. Contudo, não parece certo ter sido a intenção do legislador atribuir caráter discricionário à anulação administrativa. E, neste sentido, vai o Professor MARIO DE AROSO DE ALMEIDA, que invoca o facto de que aquilo que o artigo 168.º apenas regula, exclusivamente, são os condicionalismos aplicáveis à anulação, não servindo como resposta, do legislador, à questão da natureza da anulação administrativa.

De forma muito sintética, dizer que se a anulação corresponder ao exercício de um poder discricionário, isto implica que a Administração não está obrigada a anular o ato, mesmo quando confrontado com o interesse público. Assim, em última análise, a Administração teria a faculdade de decidir revogar ou manter aquele ato em concreto.

Para os defensores da segunda tese, a Administração encontra-se intimamente ligada ao princípio da legalidade (ou seja, vinculada à lei), pelo que, segundo esta vertente, a Administração Pública tem um verdadeiro dever de anular os atos administrativos que se apresentarem como inválidos. Uma verdadeira obrigação de repor a legalidade, isto independentemente, de qualquer consideração sobre o interesse público.

Ambas as perspetivas evoluíram no sentido em que, do lado de quem sustenta que a anulação é um poder vinculado, esta deve apenas ocorrer se não for possível sanar, ratificar ou convalidar o ato inválido, isto é, senão conseguir salvaguardar a legalidade do ato. Defende-se, ainda, a existência de uma “clausula de salvaguarda” em situações excecionais, onde a anulação seria juridicamente impossível para proteger direitos fundamentais dos beneficiários do ato. Do lado de quem sustenta a discricionariedade, defende-se que esta discricionariedade se analisa, segundo a professora FILIPA CALVÃO, na ponderação dos interesses públicos e privados envolvidos, por aplicação dos princípios da proporcionalidade e da boa-fé ou, segundo o professor P. MONIZ LOPES, um juízo ponderativo entre a confiança legítima e um interesse público concreto na revogação do ato inválido. Para além disso, segundo o professor VIEIRA DE ANDRADE, a anulação pode ser vista como um poder discricionário condicionado ao interesse público e aos princípios gerais de direito, incluindo a proteção da confiança.

Posto isto, cabe, portanto, dizer que a anulação administrativa não pode ser encarada, em primeiro lugar, como um puro poder discricionário, porque seria uma própria contrariedade ao princípio da legalidade. Não é concebível que a Administração disponha da faculdade, com base exclusivamente no seu entendimento concreto, de anular atos administrativos. Este princípio não seria tutelado, o que não se configura como aceitável num Estado de Direito. Em segundo lugar, mesmo para os que sustentam a anulação administrativa como poder discricionário, embora traduzido na realização de uma operação de ponderação entre os princípios que regem a atividade administrativa, não retratam o alcance do poder de anulação. Isto por duas ordens de razões. Por um lado, porque este exercício de ponderação em nada se assemelha com o poder discricionário. Aplica-se, pois, o princípio da proporcionalidade para resolver o conflito de princípios, à luz das circunstâncias do caso concreto, em vista à extração de uma única solução juridicamente correta. Em situações de empate, parece dever prevalecer o princípio da legalidade. Por outro lado, os autores defensores desta tese, para além de reconhecerem que devem ser respeitados os princípios jurídicos, sublinham que o elemento decisivo da anulação é o de saber se existe um interesse público atual e concreto que justifique, claramente, o exercício daquele poder. Isto é altamente criticado, tendo em consideração o princípio da legalidade exige que a Administração anule atos administrativos inválidos, independentemente da existência de um interesse público específico. A anulação é, pois, uma exigência para corrigir a violação da legalidade. O professor COLAÇO ANTUNES, destaca uma incoerência em defender que a anulação é distinta da revogação (que por sua vez, visa o interesse público), mas depois afirmar a dependência da anulação à satisfação de interesses públicos.

Também a perspetiva da anulação administrativa como poder vinculado e, portanto, como obrigação estritamente vinculada, não parece ser preferível. Como anteriormente referido, encara o poder de anulação como se não restasse à Administração outra alternativa que não fosse a de anular o ato administrativo ilegal dentro do prazo legalmente previsto, independentemente das ponderações impostas pelo princípio da tutela da confiança ou pelo princípio da proporcionalidade. Ora, se não se considerar a situação da confiança legítima do particular de boa-fé, que confiou e planeou a sua vida com base naquele ato, e se o reconduzir para uma mera tutela indemnizatória, constitui-se uma clara desconformidade constitucional.

Assim, concluindo a discussão doutrinal, pensa-se que a melhor perspetiva será a perspetiva do poder de anulação como um poder vinculado à juridicidade, ou seja, um comando dirigido à Administração para, no caso concreto, na tarefa de reconstituição da legalidade violada, harmonizar os princípios jurídicos que vinculam a atividade administrativa, no âmbito da vinculação genérica da atividade administrativa ao Direito.

 

V.               Como a Administração compatibiliza o Princípio da Legalidade e o Princípio da tutela da confiança?

 

Cabe à Administração compatibilizar as exigências do princípio da legalidade com as decorrentes do princípio da tutela da confiança, no respeito pelo princípio da proporcionalidade.

Em primeiro lugar, confrontados com atos administrativos em relação aos quais não foi foram depositados quaisquer investimentos de confiança, por parte dos particulares, a Administração, tem o dever de anular esses mesmos atos, produzindo-se o efeito típico ex tunc da anulação. Quer isto dizer que, ao ser anulado, o ato é considerado juridicamente inexistente desde o momento em que foi praticado, já que anulação retroage à data da emissão do ato, como se ele nunca tivesse produzido quaisquer efeitos jurídicos válidos.

Em segundo lugar, ocorridos já investimentos de confiança, tudo depende da intensidade desse mesmo investimento e da natureza dos interesses públicos e privados envolvidos. A tutela faz-se a três níveis.

Para as situações de confiança de grau máximo, portanto, para situações em que os particulares investiram, de tal forma, a sua confiança que a anulação os coloca numa situação de extrema onerosidade ou estejamos numa situação em que haja impossibilidade de reversão da situação de confiança, pode optar-se pela manutenção dos atos constitutivos de direitos inválidos. Ainda que não decorra expressamente esta previsão do CPA, esta falta expressa não parece obstar a que se retire esta possibilidade se perspetivarmos o exercício do poder de anulação como vinculado à juridicidade e não apenas ao princípio da legalidade. Ainda assim, se se considerar que os interesses públicos devam afastar o ato ilegal, pode admitir-se que com a anulação do ato se tutele, de forma indemnizatória, cobrindo, assim, o interesse contratual positivo ( que se refere à compensação que coloca o lesado na posição em que se encontraria caso o ato fosse válido e executado corretamente). Por conseguinte, para as situações de confiança de grau intermédio (relativamente aos atos com eficácia duradoura), pode optar-se pela anulação com eficácia apenas para o futuro. Por fim, para os casos em que a tutela da confiança não se sobreponha à normal exigência de reposição da legalidade violada, a forma de compatibilizar será através da tutela indemnizatória. Deve, nesta situação, a Administração anular e indemnizar os beneficiários de boa-fé. Obviamente, que esta ponderação deve sempre atender ao princípio da proporcionalidade, pesando, por um lado, a intensidade da confiança depositada naquele ato em concreto, como já se referiu, bem como a importância dos interesses subjacentes à reposição da legalidade, designadamente com estão em causa interesses públicos com dignidade constitucional.

 

i)                 Quanto à indemnização do dano da confiança;

 

Nos termos do artigo 168.º, nº6 do CPA, o beneficiário do ato administrativo ilegal, anulado administrativamente, tem direito a ser indemnizado, desde que desconhecesse, sem culpa, a invalidade do ato e tenha confiado na sua manutenção. Ora, segundo o Princípio da juridicidade, para que a anulação tenha lugar, é imprescindível uma primária ponderação com os princípios da tutela da confiança e de proporcionalidade. Caso isto não aconteça, não é tolerável a anulação do ato em causa.

No caso de se proceder à anulação de um ato constitutivo de direitos, em compatibilidade com a tutela da confiança, o CPA restringe o alcance da indemnização à reparação dos denominados danos anormais «a anulação administrativa de atos constitutivos de direitos constitui os beneficiários que desconhecessem sem culpa a existência da invalidade e tenham auferido, tirado partido ou feito uso da posição de vantagem em que o ato os colocava, no direito de serem indemnizados pelos danos anormais que sofram em consequência da anulação» (nos termos do artigo 168.º, nº6 do CPA). Nos termos do art. 2.º da Lei n.º67/2007, de 31 de dezembro (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das demais Entidades Públicas, conceitualiza danos anormais como «os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade , a tutela do direito.» Os danos normais, por sua vez, são aqueles que o particular suportaria inevitavelmente na sua relação com a Administração, independentemente de atuação ilegal desta. Ou seja, seriam danos normais os danos que não resultam especificamente da confiança criadas nos particulares, mas que decorram desta relação jurídico-administrativa destes para com a Administração.

 No que respeita à extensão dos danos indemnizáveis, a regra geral para a reparação do dano de confiança consiste em colocar o lesado na situação em que estaria caso não tivesse confiado na Administração (tutela negativa da confiança), e não na posição em que teria se o ato fosse válido. Contudo, em casos excecionais, pode ser indemnizado o valor correspondente à vantagem perdida, se o grau de confiança for particularmente elevado, conduzindo a uma situação de excessiva onerosidade ou impossibilidade de reversão da situação de confiança.

 

ii)               Investimento da confiança

 

Este conceito manifesta-se tanto nas situações em relação às quais o beneficiário do ato exerceu o direito que lhe foi conferido, como também naquelas em que o beneficiário, embora não tenha feito uso da vantagem ou do bem proporcionado pelo ato, adotou comportamentos ou tomou decisões que decorrem diretamente dessa atribuição.

O investimento da confiança pode mesmo materializar-se através de uma conduta omissiva, ou seja, ter como resultado a não realização de um negócio, a aquisição de um bem, a não aceitação de uma oferta de emprego. Em todas estas casos, verifica-se um investimento da confiança depositada na prática de atos administrativos, com escolhas realizadas em função dos mesmo. Assim, torna-se imprescindível proteger eventuais danos que sejam merecedores de reparação, com fundamento no princípio da tutela da confiança.

 

iii)             Desconhecimento não culposo da invalidade do ato

 

Quanto a este requisito, não se pode exigir de um cidadão comum o conhecimento de todo o conjunto normativo, nem, muito menos, que possua domínio técnico-jurídico. Neste contexto, não é razoável esperar que um cidadão desconfie da validade de atos administrativos que lhe são unilateralmente dirigidos por uma entidade pública, na qual é absolutamente compreensível que confie. Por essa razão, não se poderá exigir do particular o conhecimento da invalidade do ato na maioria das situações. O cenário altera-se quando nos referimos a operadores económicos, agentes ou profissionais de um setor específico, que normalmente estão familiarizados com a legislação aplicável à sua atividade. A exigência de conhecimento apenas se coloca perante ilegalidades inequívocas, e não em face de questões jurídicas controversas ou de interpretação complexa. Na dúvida ou perante situações de maior dificuldade interpretativa, é perfeitamente legítimo que os operadores económicos confiem na validade dos atos administrativos.

 

VI.             Conclusão

 

Em suma, a anulação administrativa de atos não se resume a uma simples e modesta correção de ilegalidades, mas envolve também a consideração dos impactos sobre os direitos e a confiança depositada pelos particulares. A evolução histórica do regime jurídico no âmbito da anulação, desde as primeiras conceções até ao modelo atual, reflete um esforço continuado de adaptação e equilíbrio entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica, tendo em conta, simultaneamente, a proteção dos direitos dos particulares.

O poder de anulação, embora vinculado à juridicidade e à manutenção da ordem pública, exige uma ponderação cuidadosa com o princípio da legítima confiança dos cidadãos. A partir da noção de que os particulares podem ser levados a confiar em atos administrativos, a anulação de tais atos não pode ocorrer sem que se considerem as consequências para esses particulares, sobretudo quando estes tenham investido de boa-fé nas expectativas geradas por esses atos. A tutela da confiança, através de mecanismos indemnizatórios, surge, assim, como um importante contrapeso que visa proteger os cidadãos contra prejuízos irreparáveis causados por atos administrativos que se revelem posteriormente inválidos.

Além disso, a flexibilidade introduzida na forma de anulação, como a possibilidade de efeitos retroativos ou futuros, vem possibilitar uma melhor adaptação às circunstâncias específicas de cada caso, atendendo à intensidade do investimento de confiança e ao grau de interesse público envolvido. No entanto, é necessário um equilíbrio delicado, pois o respeito pelo princípio da legalidade e pela reconstituição da legalidade violada não pode ser sacrificado em nome da proteção da confiança, caso esta não tenha sido substancialmente justificada.

A interdependência entre os princípios da legalidade, da segurança jurídica e da tutela da confiança reflete a complexidade da atuação administrativa. Cabe à Administração Pública, ao decidir sobre a anulação de atos, realizar uma ponderação equilibrada e fundamentada, tendo sempre presente a sua obrigação de garantir que os direitos dos cidadãos não sejam colocados em risco de forma desproporcional. Em última análise, o objetivo da anulação administrativa deve ser sempre a manutenção da confiança na Administração Pública, ao mesmo tempo que se assegura a correção das ilegalidades, sempre com respeito pelos princípios constitucionais que orientam a atuação da Administração no Estado de Direito. A anulação administrativa deve ser vista, efetivamente, como uma decisão reflexível do compromisso da Administração com a legalidade e justiça.

VII.           Bibliografia

 

ALMEIDA, M. Aroso de, 2018, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5ª edição, Almedina, Coimbra.

MACIEIRINHA, Tiago, Ainda sobre a anulação administrativa e a tutela da confiança dos particulares, Católica Law Review, Volume III, nº1, janeiro 2019

Código do Procedimento Administrativo, 2023 (7ª ed.) Almedina

 

Joana Fonseca, nº 62870

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